Monday 24 February 2020

Eu Eutanásia sou

Mata-se a dor dormindo ou paleando-a acordados?
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Tenho lido muito comentário sobre o que em Portugal se chama eutanásia e em francês canadiano, com pudor, Aide Médicale à Mourir (AMM). Já agora vai mais uma expressão francesa a propósito: Déjà vu. Porque é esta a impressão que me fica quando leio artigos na imprensa escrita, falada, televisiva e comentários nas redes sociais em proveniência do outro lado do Atlântico. Comparando os ecos de um debate que neste Canadá se esgotou há anos aos que se esgrimem na actual Lusitânia, verifica-se que são do mesmo teor e sabor, acompanhados por semelhante cortejo de indignações, pavores, estremecimentos humanistas e previsões trágicas. Vai daí, como se faz nos países democráticos, os governos levaram o assunto à praça pública, escutaram, leram, consultaram, analisaram... E deixaram o assunto entre as mãos dos eleitos que, depois dos habituais espectáculos partidários, reconheceram em maioria que a vida, do ponto de vista da laicidade, é pertença de quem a possui. Nesta via, e ignorando crenças religiosas, sensibilidades culturais, éticas pessoais e posições partidárias, o Canadá escreveu leis, traçou linhas vermelhas e criou condições que até Abril do ano passado tinham ajudado 6749 cidadãos a morrer. Aqueles que por considerações pessoais decidiram enveredar pelo caminho mais longo e sofredor foram ajudados com paliativos, ninguém os empurrou para atalhos. 

     No fundo é simples: empatia por uns, respeito pelos outros, simpatia por todos. Explicado por extenso: não escolhi vir ao mundo e ajudaram-me, ajudem-me por favor a sair dele se eu optar por essa via.

     Como nunca sofri a ponto de atentar contra a minha vida nem, pior, contra a de um ente querido que sobrevive dormindo drogado e urrando acordado, fui ler o que Ángel Hernández, um espanhol que matou a esposa, Maria Carrasco, tinha a dizer sobre o assunto. Pois o homem, mesmo se destroçado, diz que não se arrepende, fê-lo a pedido da própria Maria cuja esclerose múltipla não a deixava falar, comer, ficar de pé ou escrever, para lá de a martirizar com graves problemas de audição e visão. E como o Ángel não era assassino, imagino que ao matar a companheira morreu algo dentro dele. Outrossim, gravou o acto para sensibilizar quem nunca foi torturado, dado que no mui católico reino de Espanha encurtar o sofrimento é pecado e é proibido. Maria Carrasco tinha 61 anos.

     Fui igualmente questionar o senhor Google sobre o caso Marieke Vervoort vencedora de várias medalhas de ouro nos paraolímpicos. Eis o que ele me disse. Que a atleta sofrera de tetraplegia progressiva, doença que a condenaria a uma morte certa e atroz se Marieke não a tivesse recusado. Vivendo num país onde a morte assistida está em vigor desde 2002, esta verdadeira heroína nacional, depois de assinar a papelada, aproveitou a sua notoriedade para explicar às outras nações que a ausência da morte assistida é, para quem sofre, intolerável: «Penso que haverá menos suicídios quando todos os países legalizarem a eutanásia.» E abandonou o estádio como sempre o fez, com dignidade e muita coragem. Marieke Vervoort tinha 40 anos.

     O debate português esgotou-se como o canadiano, os políticos discutiram, decidiram, escreveram textos que seguem os caminhos prescritos, esperemos que não venha milagre inesperado que o impeça de virar lei. Portugal entrará assim no clube restrito dos países que permitem a morte assistida, são seis actualmente. 

     Independentemente desta, há na Lusitânia uma outra discussão que persiste, furiosamente, com insultos, injúrias, ameaças, ódios e rilhar de dentes, é o omnipresente racismo que conhece verdadeiras erupções pontuais onde os adjectivos corrosivos se inflamam como obuses incendiários. Aqui não se fala da legalidade do racismo, coisa caduca e criminosa professada por seres obsoletos e delinquentes: ao contrário da eutanásia, a torpe ideologia é proscrita pela constituição na mesma linha em que o fascismo é banido. Trata-se aqui de uma altercação sem diálogo onde ninguém se diz racista e muitos o são, alguns conscientemente e os outros sem disso se aperceberem. Não lhe vejo o fim, acudam-me, no meu modesto entender nem é debate é cacofonia. Ademais, tenho visto tanto especialista de redes sociais lançar teorias às cacetadas que me sinto como aquele bom samaritano que vai separar dois contendores e apanha nas ventas de ambos. Enquanto a zoada zoa, as vítimas do vírus do racismo agem como alguns pacientes sofrendo de doenças terminais, calam-se e não exteriorizam publicamente a dor que os mina por dentro. E quando o calvário do oprimido é insuportável e os gritos impossíveis de conter, são lapidados por gente armada de pedregulhos de píxel, mesmo por alguns que acreditam estarem imunes ao vírus, sem tomarem consciência das suas mutações.

     Com tanto especialista a pronunciar-se com autoridade, escrever, ler e comentar sobre o assunto, vem-me a impressão que, de tanto ser usada, esta palavra racismo perde a cor. Deslavando-se, sim, mas sem perder a essência, há ódios que se acalentam com muita ternura e estimação, mesmo quando provocam sofrimentos para os quais, ao contrário dos outros, não existem paliativos nem soluções humanamente químicas.

     E como os preconceitos espreitam por todos os poros das nossas sociedades, espero que nunca racializem a eutanásia visto que é impossível eutanasiar o racismo.


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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Assim Escrevia Bento Kissama, Romance, Português, Guerra e Paz, Editores, Lisboa, Portugal, 2019, 296p, ISBN: 9789897024764 

São Paulo, Prisão de Luanda, Memórias, Português, Guerra e Paz, Editores, Lisboa, Portugal, 2019, 176p, ISBN 9789897024511 

Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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1 comment:

  1. Como sempre uma análise aprofundadamente ligeira...
    Se a morte é como os impostos - de ambos ninguém se livra - já o racismo é um mal que o conhecimento e a educação poderão eventualmente erradicar.

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