Monday 22 October 2018

Gamanços entre gente boa

Onde se questiona o verbo gamar
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Munch - The Scream

Fulano Untal é pseudónimo, não me atreveria, por motivos de discrição, a tratá-lo por nome próprio e de família (das boas). Era do género bem-educado e estudante aplicado, bonitão, divertido, dançarino e desportista, enfim, cidadão respeitado e respeitável, defensor dos bons costumes nacionais e tradicionais. Trazia ao pescoço uma cruz de oiro de lei, afirmação inequívoca da sua fé e nada de errado nisto, aliás aquele símbolo religioso nunca lhe trouxe problemas nem perseguições pelas bandas onde viveu. E até cantava no coro da igreja, elevando a alma dos presentes quando a sua voz de barítono entoava o Ave-Maria de Schubert ou mesmo de Gounod.

E que não se pense que era um bota-de-elástico obtuso, não senhor, criticava as falhas da democracia, indignava-se com a corrupção e até pontificava sobre o meio ambiente com uma ruga de preocupação na testa. Bom contador, carregava nos bolsos uma quantidade inesgotável de piadas que nos faziam rir, eram de loiras, eram de homossexuais, eram de prostitutas, eram de políticos... Sendo descendente de brasileiros e lusitanos contava anedotas de portugueses aos primeiros e de alentejanos aos segundos. Eram as mesmas, todavia recicladas pela sua inenarrável criatividade para melhor servir o humor de quem o escutava. Até sussurrava pilhérias raciais («À boca pequena, não vá o politicamente correcto julgar-me em tribunal popular»), assegurando-se previamente que não havia gente encarapinhada e de pele escura entre a entusiasmada assistência. A sua esmerada educação impedia-o de ferir susceptibilidades. 

Para não pensarmos que era racista, tomava a precaução de exibir, nas redes sociais, fotografias abraçado a um negro, a um mulato e a um cabrito. Para quem desconhece a rica terminologia colonial, aqui vai explicação necessária: cabrito é o descendente de branco com mestiça ou vice-versa ou entre dois cabritos (de sexo contrário). E a propósito destes últimos, sacava logo chalaça apropriada, entre duas casquinadas, acariciando o crucifixo de oiro de lei: «Cabritos só em caldeirada». Claro que aquilo não era de pessoa racista, o dito cujo sendo, segundo ele próprio, de mente aberta: «Podemos rir de tudo, mas não com todos. Desde que não haja intuito de ofender». Ademais, revoltava-se com o lixo nas cidades e praias, condenava grafitos selvagens e escrevia nas redes sociais a sua irritação contra a falta de educação desta juventude preguiçosa. 

Uma integridade de aço inoxidável!  

Ora aconteceu um dia que algumas nuvens obscuras, empurradas por ventos migrando de Sul para Norte, turvaram esta bela alma, tão divertida, tão aberta, tão cheia de luz e probidade. E não só a ofuscaram, dir-se-ia mesmo que a envenenaram, porque aquele ser adorável, responsável, cristão e ecológico pôs-se, pouco a pouco, a escrever ódio em vez de amor, a trocar palavras de humanidade por adjectivos rancorosos, a substituir tolerâncias raciais por discriminações. Surpreendentemente, alguns dos que apreciavam aquele bom humor e aquela postura cidadã, foram também inquietados pelas mesmas nuvens que continuavam a soprar, cada vez mais fortes, de Sul para Norte. Era o vento que as trazia! Como sabes, o vento é uma movimentação do ar, que se desloca das altas para as baixas pressões, não é fenómeno complicado senão eu nunca o compreenderia. Mas Fulano Untal, estarrecido pelas nuvens escuras, e apesar da sua esmerada educação, tinha perdido o salutar espírito científico que o animara durante toda a sua vida. As nuvens negras insinuaram-se nos seus pesadelos, perdeu o sono e deu-lhe para tentar travar o vento com barreiras de palavras. Mudou muito... E um dia aconteceu coisa de assombrar! Apareceu-nos, de cenho fechado, sobrolho carregado e olho vermelho, exibindo aquela cruz de oiro, mas, ó espanto, dobrada nas pontas. 

Pecado? Blasfémia? Heresia? 

É que, dizem os entendidos nestas questões espirituais, uma cruz que se preza tem as hastes direitas, a horizontal cruzando a vertical. Que o instrumento de tortura apresente uma viga mais longa, menos simetria na composição... São detalhes sem importância. Mas curvada nas pontas? Houve mesmo alguém que, não se dando conta que era a mesma cruz de oiro que ele trazia desde a infância, agora retorcida, perguntou:

 Meu... Essa cruz... Onde é que a gamaste? (Do verbo gamar, claro, significando roubar. Nota do Autor)

 Foi gamada e forjada nos ventos invasores do Sul! - Grunhiu Fulano Untal numa voz rouca, tão diferente daquela que encantava os fiéis quando, no coro da igreja, se elevava num Ave-Maria de Schubert ou mesmo de Gounod. 

Fiquei pasmado! Sofreria o dito cujo de possessão demoníaca? Belzebu, viajando pelos ventos do Sul, teria encontrado caminhos foscos para corromper aquela alma tão pura? Abalado com a transformação, fui pedir conselho ao Rebenta-Balões que é, no caso de não o conheceres, um amigo meu, cáustico, amargo e ateu, descrente no futuro da humanidade da qual entrevê o fim, destruída pelos tornados e furacões da ignorância. Suspeito até que o bicho é de esquerda, mas não comentes isto com ninguém, não quero ver-me associado a esses anticristos... Vade retro Satanás !

Ele ouviu-me com a impaciência costumeira, riu-se, escarninho, cuspiu três palavras feias e fez-me esta pergunta, antes de desligar, que te reencaminho, para ver se compreendes alguma coisa, porque eu, ignorante e ingénuo como sempre, não pesquei patavina:

 E tu? Já gamaste a tua cruz?

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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507


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