Tuesday 22 August 2017

A Arte e a cultura das podas

Da Arte de podar eficazmente a Cultura
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O Português (detalhe), Georges Braque (1882-1963)

Olha, deu-me para isto, ruminar sobre a cultura e as manifestações artísticas. É que fui convidado para uma conferência e quero passar por um tipo culto, coisa que, nos tempos em que era menino e moço, impressionava muita gente. Hoje menos, estamos mais virados para a eficácia e a eficiência que, imagina, pensava que fossem sinónimos. Engano! Diz-me o dicionário da Porto Editora que eficácia é a «capacidade de cumprir os objectivos pretendidos»; e que eficiência é o «poder de realizar (algo) convenientemente, despendendo um mínimo de esforço, tempo e outros recursos». Dado que sou de compreensão lenta, fiquei confuso. E quando é assim, arrisco-me a pedir ajuda ao meu amigo Rebenta-Balões, um tipo sarcástico, azedo e pessimista, que lê muito para justificar a sua descrença no futuro da humanidade.

Para começar, largou-me uns risinhos sardónicos antes de apresentar exemplo prático: «Calcula que o nosso governo quer cortar despesas. A cultura está entre os primeiros animais a sangrar, até tu sabes disso.» Vai daí, explicou-me, o primeiro-ministro coloca nos ministérios apropriados pessoas capazes de manejar tesouras de podar e sorrisos cordiais com o mesmo talento. «Tipos eficientes! Porque governo eficaz é o que engaja gente eficiente», concluiu, triunfante. Compreendi à primeira, caso raro, desliguei sem dizer água vai, e pus-me a repetir o seguinte, como um mantra: «Eficácia é fazer com que as coisas correctas sejam feitas; Eficiência é fazer as coisas de maneira correcta»... Patrão e operário... Capitão e soldado... Primeiro-ministro e ministro!

Olha... Que chatice! À força de querer compreender a diferença entre aqueles dois vocábulos, perdi o fio à meada. Que falta de eficácia... Ou de eficiência? Já comecei a baralhar tudo outra vez... Destarte não vou a lado nenhum. Arte! É isso... Estava a dizer-te que, para brilhar em sociedade, mergulhei numa modesta reflexão sobre a Arte. Palavra puxa palavra, veio-me à memória a altivez da minha adolescência inferior, fase que não me traz nenhum motivo de orgulho. Hoje distingo três períodos na minha adolescência (é típico dos rapazes, as meninas são mais bem comportadas): muito inferior, assaz inferior e inferior. Deixemos as duas primeiras lá onde elas ficaram, mas na última, para me dar ares de chico esperto e, sobretudo, evidenciar-me em frente das garotas (coitadas), pontificava verdades e cobria de escárnio e chacota personalidades que são, geralmente, aceites como génios. Consequentemente, pronunciava o nome de Picasso como um insulto cuspido a todo o gatafunho incompreensível à minha sensibilidade… que não era muita, dou-me hoje conta disso. E ria grosso, ridicularizando uma tela cubista onde se exibiam alguns frutos com má cara, acompanhados de mexilhões obscuros, pomposamente intitulada: Natureza morta com mexilhões. Riso que se amarelou quando lhe descobri o preço absurdo só porque tinha saído dos pincéis de Georges Braque. Não sei quanto custam os frutos de cor suspeita e os mariscos em decomposição, mas desconfio que aquela banana não fica nada em conta.

Abreviando… Para brilhar em sociedade e provar, cientificamente, que aquilo não tinha pés nem cabeça, fui à biblioteca ler sobre o dito cujo cubismo e outros movimentos afins. Erro! Acredita ou não, mas o facto é que, depois de muita leitura, dei comigo a fundir-me nas cores e formas pintadas sobre telas lendárias: ressenti a quietude pousada nas harmonias brandas do ocaso na Impressão Nascer do Sol (Monet); o desespero cativo na boca escancarada do Grito (Munch); o terror provocado pela violência nazi na aldeia basca, martirizada, de Guernica (Picasso); a vibração das harmónicas de um bairro que dança no Moinho da Galette (Renoir). E não fiquei por ali: perdi-me nos meandros de O Português (Braque) onde há quem veja uma caravela escondida, antes de abandonar cubistas e impressionistas e passar adiante. Mergulhei então no surrealismo da Linha de Águas (Mário Cesariny); mareei-me numa tela abstracta intitulada Mar e Barco (Fernando Lanhas); impressionei-me com os bêbados Festejando o São Martinho (José Malhôa); excitei-me com a sensualidade exprimida no Lissabon (Mário Eloy).

As manifestações artísticas tornam-se complexas e às vezes incompreensíveis mesmo quando no-las tentam explicar. Como por exemplo aquele quadro que custou mais de um milhão de dólares a uma galeria canadiana, composto por três faixas verticais de cores diferentes. A galeria fez mau negócio, creio, ficou-lhe cara a faixa, pelo dinheiro desembolsado poderia ter negociado uma meia dúzia delas. Faixas esotéricas, claro, só alguns, poucos, iniciados lhe compreenderam o sentido. E acreditas que eu acho que estou entre eles? Se não fosse tão tímido até rebentava de orgulho! Pois fica a saber que, segundo este vosso modesto servidor, essas três faixas representam as três vertentes da arte paleolítica. É verdade que só uma delas, a Visual, deixou vestígios: pinturas rupestres, estatuetas femininas, colares, pingentes em marfim de mamute... Testemunhos que, acredito, fazem parte das três (artes) primárias sendo as outras, segundo ainda a minha inocente opinião: a Musical e a Narrativa (na sua forma oral, claro, eles eram todos analfabetos por uma simples razão: a escrita não tinha sido inventada). 

Três são, portanto, as artes primárias, é minha profunda convicção. E mesmo se estou enganado insisto, pertenço ao grande clube dos ignorantes teimosos. E olha, se não acreditas em mim, faz uma experiência. Vai acampar com uma súcia de amigos, sem a vossa quinquilharia electrónica, sem papel nem lápis, sem livros, sem instrumentos de música e tentem divertir-se (virtuosamente) à volta de uma fogueira. Que podem fazer? Chocar dois paus ou pedras para bater um ritmo; cantar, dançar, contar histórias; desenhar formas na rocha com as pontas das achas carbonizadas... Vês? Apenas três actividades artísticas vos foram permitidas: Música, Artes cénicas, Pintura. 

E repara que essas manifestações artísticas, espontâneas, ninguém pode roubá-las, nem enfraquecê-las com cortes orçamentais, nem metê-las em prisões como fazem alguns ditadores (há-os eleitos), que sofrem de uma desconfiança crónica em relação às artes e aos artistas. Porque a Arte, sabes bem disso, não é inocente. Ela protesta, Ela reclama, Ela denuncia, e tal é o Seu poder que ditadores de todos os matizes nomeiam tipos eficientes que, de navalha em punho, sorrisos de crocodilo e olhos impiedosos, talham na carne viva da Arte para a esculpir à maneira deles. Mas ela escapa-se-lhes por entre os dedos peludos e os tiranos, furiosos, encontram-na pintada nas paredes das prisões, cantada por condenados a caminho do cadafalso, escrita em poemas de exílio. A Arte é um código, por vezes complexo, que os amantes da liberdade cifram e decifram, Ela é uma espécie de filtro de amor, um elixir da verdade, uma poção mágica no caldeirão de uma feiticeira. A Arte é perigosa para quem escraviza, dos escravos nasceu o jazz e o jazz plantou sementes de liberdade.

Cada um de nós possui pelo menos um talento artístico, desenvolvido ou embrionário, e é ele uma das fronteiras traçadas entre humanos e animais. Neste esforço planetário, actualmente em curso, de reduzir os humanos a robôs-operários eficientes, dirigidos por robôs-gestores eficazes cujo único fito é o de muito produzir para enriquecer uns poucos, esses talentos constituem refúgios, células clandestinas sob o brilhar do sol, barricadas virtuais que os déspotas (mesmo eleitos) não conseguem enxergar. Quem canta, toca e dança, quem conta, escreve e poetiza, quem pinta, esculpe e desenha, mantém viva a chama das fogueiras pré-históricas, passada de mão em mão, através dos milénios, até aos dias de hoje. 

Não se apaga o sol com as mãos, nem se abafa o vento em calabouços.


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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507


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