Sunday 29 January 2017

Acerca das cercas que nos cercam

Onde se fala de cercas, muros e muralhas de hoje e de antanho
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Olha, hoje acordei com vontade de te chatear com muros e muralhas. Talvez porque os meus olhos caíram naquela frase do Fernando Pessoa: «Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo…» Um castelo! Mesmo o Fernando, espírito livre disseminado por tantos heterónimos, sentiu necessidade de se fortificar. Como sou inocente e tenho a mania de colocar perguntas, perguntei-me por que razão o nosso poeta não se serviria dessas mesmas pedras para construir uma casa de campo ou pavimentar os caminhos.

A propósito de pedras… Sabes uma coisa que me espantou quando cheguei a este país de gelos e neves? A ausência de muros nos quintais! Em vez de erguerem vedações com os pedregulhos dos caminhos, substituíram-nos por sebes de cedro, é mais bonito, não perdem os tons de verde quando as neves acampam, e com as agulhas há coisas que se podem fazer. Aprimoram o saborzinho das infusões, contêm vitamina C e até dizem que ajudam a desencadear o período das senhoras. Cá em casa colocamos agulhas de cedro nas gavetas, para aromatizar as roupas.

Na cidadezinha bonitinha onde nasci, as sebes de cedro não existiam, eram muros de calhaus ou betão dividindo quintais e protegendo fachadas. Calhaus que não serviam para grande coisa, nem sequer para cozinhar uma sopa de pedra, mas que, hélas, foram muito procurados numa outra situação… Assaz difícil, digamos. Lamentavelmente, mesmo as cidadezinhas bonitinhas podem ser atingidas por conflitos. E assim foi com aquela. Senhor Guerra grunhiu ao longe, aproximou-se, estrondeou pelos arredores e instalou-se com armas e bagagens, acompanhado por um casal de filhos muito frágeis: Medo e Insegurança. E à medida que Guerra avançava pelo país fora, os murinhos de pedra ou betão foram crescendo até chegarem ao tamanho de muralhas. A observação deste fenómeno levou-me a duas conclusões: 1) a muralha é um muro que atingiu a idade adulta; 2) a guerra é o estrume dos muros. 

Mas terá sido sempre assim? 

Infelizmente, e como é do teu conhecimento, sou muito ignorante, o que me leva a tomar pílulas de conhecimento do doutor Internet. Vai daí, e para partilhar contigo alguns dados, fui à caça das muralhas deixadas pela história dos humanos e seus impérios. Iiiiih! Como dizem os cumpadis brasileiros: Minha nossa! Chineses na Ásia; Shonas em África; Incas na América Latina; Romanos na Europa; Sumérios no Iraque… Aquilo é um nunca acabar de muros e muralhas que serpenteiam pela crosta deste planeta a que chamamos Terra. Até se diz que a muralha da China é visível a partir do espaço, se calhar é por isso que os extraterrestres, com medo de serem murados, nunca se manifestaram. Com o tempo essas muralhas encontraram outra serventia, são muito prezadas por turistas e historiadores: uns embasbacando-se diante delas a metralhar câmaras fotográficas; os outros, meditabundos, tentando estudar-lhes a génese. Seja como for, uma constatação saltou-me aos ignaros olhos: foram todas levantadas por impérios ou reinos poderosos que, a um momento ou outro da sua vida, se sentiram ameaçados por movimentos de populações hostis. 

Mas isso foi no passado… E hoje? 

Não é para deixar sem trabalho os historiadores e as agências turísticas do futuro, que alguns dos nossos impérios, reinos e repúblicas contemporâneos, quase todos democráticos, se dedicam, neste preciso instante, a semelhante corveia de conceber, construir, manter e prolongar muros e muralhas pela crosta desta Terra, já a eles tão habituada. Todos eles, imagina, concebidos sob a inspiração de Guerra e de seus dois filhos legítimos: Medo e Insegurança. Digo legítimos porque existe um bastardo oculto, vicioso, macho, manhoso e bandido, que aparece quando dele se necessita: Ódio! Há, no entanto, uma diferença entre estes três manos tão chegados: Insegurança e Medo tiveram infância, Ódio não. 

Infância… Tivemo-la todos, não? Quando era criança, brinquei, como todos os pirralhos, a construir coisas. E como nasci numa cidadezinha bonitinha plantada diante de um oceano, onde havia imensas praias, construía com areia em vez de pedra. Sulcava um rego a partir do local onde a vaga se espraiava, até um buraco cavado mais longe, e ficava ali a admirar a água correndo canal acima. Na minha imaginação, o buraco tornava-se num grande lago com um dragão antropófago lá dentro. Também construí casinhas, poucas, sem muros, muito mal feitinhas, porque sou nulo para tudo o que exige habilidade plástica. Apesar desta insuficiência, armei-me de paciência e lá escavei alguns carros imobilizados na areia da praia. As minhas ocupações preferidas, contudo, foram três: explorador de terras virgens; armador de barcos corsários; piloto de tudo o que voava. Um mastro espetado num esqueleto de choco, uns fragmentos de palitos nas amuradas… Eis um feroz flibusteiro cruzando os mares das Antilhas! E enquanto os meus corsários pirateavam o mundo, lançava ao Amazonas jangadas de cortiça que boiavam entre margens de selvas virgens a abarrotar de índios com franjas, desconfiados, pintados de preto e vermelho, piercings nos narizes e zarabatanas nos lábios finos. Quando mares e rios não me bastavam, descolava de porta-aviões, pilotando caças, helicópteros salva-vidas ou singrando ventos ao comando de planadores. 

O que não somos quando somos crianças...

Muitos anos depois, o adulto em que me tornei tentou encontrar um denominador comum a estes sonhos e a explicação óbvia, fácil, foi: sonhos de liberdade. Hoje, no entanto, ao acordar com este impulso inexplicável de te chatear com muros e muralhas, encontrei outro factor que os meus sonhos infantis partilhavam: barcos e aviões movem-se por espaços onde é impossível erguerem-se muros. Atirados ao mar os calhaus afundam-se, lançados ao ar os calhaus caem. Sobre as águas, só pontes se podem construir.

Quem concebe, constrói, mantém e prolonga muros e muralhas, há muito que perdeu os sonhos de criança. Mesmo quando algumas dessas muralhas foram construídas para combaterem ameaças reais, e não aquelas inventadas por políticos manhosos, sequiosos de poder porque as riquezas já não lhes bastam. Por falar nisso… Disseram-me que há uma muralha que tem feito correr muita tinta e ilumina muito pixel, não sei se ouviste falar nela. Parece que começou a ser levantada há muitos anos, num país muito poderoso, há mesmo quem diga que se trata da democracia mais possante do mundo. Se assim o é, é um império! Ora parece que o tal muro foi iniciado por um dos imperadores eleitos, loiro e inteligentíssimo, com muita visão, que tinha um fraquinho por uma estagiária jovenzinha que por lá andava. Contaram-me também que lhe sucedeu um outro César que, tolhido por um quociente de inteligência muito baixo, coitadinho, fez duas coisas com os calhaus dos caminhos: atirou-os ao mundo como mísseis e utilizou-os para prolongar o tal muro que a inteligência do predecessor concebera. Fiquei também ao corrente que o seguinte na linha dos imperadores eleitos, um homem simpático, mestiço, tão inteligente como o monarca loiro, achou boa a ideia e conservou-a, ajuntando muitos calhaus ao muro já comprido. Rezam ainda as más-línguas que o último na sucessão ao trono, do qual se desconhece o QI mas que não aparenta ser muito elevado, vai continuar a impressionante obra que herdou, sem aumentar o fardo fiscal dos contribuintes. Muralha gratuita, coisa nunca vista. 

Espantaram-me essas sebes de cedro, quando aqui cheguei, dizendo para comigo que, se um dia vivesse numa casa com cerca, haveria de ser de pedra. Entretanto cresci mais um pouquinho e desisti da ideia, graças às pílulas de conhecimento do doutor Internet que me abriram o espírito e me inverteram os medos. É que, ao considerar as cercas, muros e muralhas deste mundo, subiu-me um pavor pelas tripas acima: e se hordas de vândalos mal-intencionados utilizassem esses mesmos calhaus para me demolirem a casa? «Good fences make good neighbors» é um provérbio popular da tal democracia mais poderosa do mundo, isto é: «As boas cercas fazem os bons vizinhos». Uma ironia, vindo de onde vem, mas enfim... No meu caso, há alguma verdade nesse adágio porque tenho os dois: bons vizinhos e boa cerca. Trata-se duma sebe de cedro, como sabes, de cujas agulhas – que dão bom gosto às infusões e aromatizam as roupas nas gavetas – se extrai um óleo essencial que, quando aquecido num difusor, produz emanações favoráveis à prática da meditação e do ioga. 

Em verdade, em verdade te digo, com a pedra se constrói e com a pedra se destrói. Mau grado esta frase de inspiração bíblica que me veio à cabeça, sabes que sou descrente, não sabes? E no entanto, como tenho um espírito curioso, embora ignorante, acontece-me desfolhar obras religiosas onde recolho algumas máximas dignas de reflexão. Foi assim que encontrei esta magnífica frase no livro mais vendido no planeta:

Provérbios 25:28, «Como a cidade derrubada, sem muro, assim é o homem que não pode conter o seu espírito.»


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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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