Wednesday 6 July 2016

Uma história de ilhéus...

Onde se fala de mundos e ilhas 
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É praticamente impossível não abordar um certo acontecimento que se passou lá pelo primeiro mundo durante estas últimas semanas. Digo primeiro porque, como estou a ficar velho, sou do tempo em que os países se distribuíam pelo primeiro, segundo e terceiro mundos, conceito que teria sido desenvolvido pelos horríveis maoistas... Cruzes, credo, canhoto! Com a guerra fria, a terminologia evoluiu e quando dei por ela falava-se em mundos desenvolvidos, subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento. A estes últimos, o meu vocabulário pessoal chama-lhes países à rasca, desculpem-me a palavra chã, feia, porque feio é também o que se passa nessas terras que, em linguagem mais polida, chamo países aflitos ou à nora. Há quem prefira adjectivá-los com outro vocábulo utilizado no teatro para desejar sorte: o mot de Cambronne. Enfim, os países desenvolvidos podem igualmente designar-se como Norte e os à rasca como Sul…

Voltemos àquele acontecimento muito publicitado, do qual certamente tiveste conhecimento. Acalma-te, não vai ser questão dos países que andam à nora com tanta desgraça que até chateia. Aquilo é bombardeamentos aéreos e terrestres, civis a sofrer e morrer, criancinhas afogadas no mar, cidades destruídas, crises humanitárias… Fala-se tanto dessas misérias que já perderam as primeiras páginas, ninguém liga a isso e aposto que até baixou o preço da publicidade enquadrando tais notícias. Todavia nem todo o terceiro mundo anda à trolha e à massa, graças aos céus alguns não sofrem de guerras nem guerrilhas, estão em paz e padecem apenas de males menores: governos corruptos, bancarrotas, juventude sem futuro, prostituição infantil e uma pobreza franciscana que é de quebrar o coração ao mais empedernido dos ateus.

Lembra-me por favor que estou aqui para te falar daquele acontecimento que muito encareceu a publicidade na imprensa falada e escrita, mas permite-me abrir um parêntesis para te contar uma boa do cartoonista alemão ERL que ilustrou a relação entre países desenvolvidos e países em guerra por meio de dois desenhos. No primeiro, vê-se equipamento militar pesado a ser exportado do Norte para o Sul. No segundo, vê-se uma série de refugiados, homens, crianças e mulheres com véus a fugirem, esbaforidos, em sentido contrário, para o Norte. Fecho os parêntesis.

Sejamos disciplinados, regressemos ao assunto principal: o importante acontecimento que se passou naquele país do primeiro mundo, o desenvolvido… Como é que chama… Irra! Sabes qual é, não sabes? Fica na Europa, numas ilhas endinheiradas do Norte, com muita civilização e democracia… O mesmo que dominou muito mundo ao sul do Mediterrâneo, onde se situam países tão famintos, tão aflitos e com tantos milhões de refugiados, que as agências de rating nem para lixo os querem. E olha a injustiça, há más-línguas a espalhar boatos contra essa nação abastada que mora nas Ilhas... Que chatice, não consigo lembrar-me do nome. Arre! Que memória... 

Continuemos! 

Esses detractores, dizia eu, alardeiam por esse mundo fora uma revoltante calúnia: como, durante séculos, os exércitos ilhéus imperiais se impuseram ao mundo do Sul, sugando-lhes o tutano nutritivo... Concluem que é culpa das ilhas (e de outras potências do mesmo jaez) se esses países, que andam à nora, estão hoje tão à rasca. Aposto um braço que essas maledicências provêem duma esquerda republicana invejosa do imperial sucesso daquela nação, onde aconteceu esse evento que me traz hoje aqui. E digo esquerda republicana porque, mesmo se me esqueci do nome (ai esta minha memória) das tais ilhas, sei que são governadas por uma monarquia constitucional conservadora onde reina uma soberana já com a sua idade, muito bondosa, e à qual prestei juramento de fidelidade quando virei canadiano.

Adiante! 

Ora então, e enfim, vamos lá falar do tal evento que anda a fazer correr tanta tinta e a iluminar tanto pixel. Aconteceu que os cidadãos dessas grandes ilhas, onde reina a soberana idosa, foram em massa votar para resolver a bem um litígio que os dividia. Aparentemente nada de complicado para uma nação marítima, o governo pedia-lhes para escolher entre duas perguntas: uma, continuamos atracados às costas continentais; outra, largamos amarras e voltamos a ser verdadeiras ilhas como no good old times? Reparaste na palavra «aparentemente» mais acima, não reparaste? Não está lá por acaso, foi judiciosamente escolhida, porque se as perguntas eram simples, a resposta poderia ter consequências brutais para quem ia às urnas ou assistia de perto ou de longe àquela animação. O resultado foi rés vez campo de Ourique, mas ganhou o campo do good old times, constituído principalmente por good old fellows.

Ofuscado pela minha santa ignorância, não entendi imediatamente os motivos que conduziram os cidadãos mais velhos do reino a cortar amarras. Pensei que andavam com vontade de se afastar de terra firme por causa do alho, muito consumido no continente e cujas emanações são insuportáveis aos cidadãos conservadores das Ilhas… Ai… Tinha-lhes o nome na pontinha da língua…  Escapou-se-me por um triz... Enfim... Para deslindar aquela trapalhada, pus-me a ler artigos pouco complicados com gráficos e tudo, até compreender qualquer coisa. Como sou pouco original, veio-me à cabeça um jogo de palavras simplório: mesmo se o resultado do voto não é culpa do alho, há muita gente gritando que se meteu numa alhada.

Sobretudo uma grande parte da gente jovem que, como seria de esperar, não ouviu os conselhos sensatos dos mais velhos e votou no acostamento aos portos continentais. Os imprudentes preferiam misturar-se com a juventude daquelas hordas exóticas que, aproveitando-se do barco atracado, lhe trepavam ao convés e faziam desmandos. Felizmente prevaleceu o bom senso de velhos como eu, cuja experiência falou pela boca das urnas. À imprudência da juventude, souberam opor a sabedoria e o orgulho nacionais gravemente ameaçados pelo oportunismo dos bárbaros invasores. Bandos de ingratos que em vez de lutarem pela paz, progresso e estabilidade das comunidades onde nasceram, empunhando o equipamento militar que tão generosamente o Norte vende ao Sul, desertam vergonhosamente, obrigando-nos a cavar referendos, plantar muros e levantar fronteiras. 

E não dêem ouvido aos costumeiros liberais do centro-esquerda, que andam por aí a exibir por tudo quanto é Internet um gráfico demonstrando que esses jovens estúrdios, mesmo depois do último sábio ilhéu ter desaparecido, continuarão a viver com as consequências do referendo. Contudo, a juventude não sendo eterna, os incautos hão-de crescer, criar famílias, ganhar juízo, e um dia hão-de agradecer aos good old fellows a sua exemplar oposição à abertura dos portos. E se não compreenderem uma verdade de base, que é erguendo sólidas muralhas que se defendem as luzes das conquistas civilizacionais, assistirão, arrependidos, ao desvanecer do good old times. Bem feito!

Mas a democracia falou e prevaleceu a soberana vontade duma população que, como eu, envelhece a votos vistos. E quando envelhecemos, dizem alguns entendidos, rejuvenescem-se preconceitos antigos, intolerâncias alimentares, fobias de tribo e tabus culturais. A propósito, e apesar de me ter esquecido do nome dessas ilhas, lembrei-me dum primeiro-ministro que as governou, homem de muito carisma, amante de champanhe e charutos quecomo era seu hábito, tornou famosa uma frase já existente: «A democracia é a pior forma de governo imaginável, à excepção de todas as outras que foram experimentadas.» 

Perguntinha para encerrar isto: e se a democracia fosse igualmente barómetro de preconceitos? 


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© Carlos Taveira


LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE


Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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