Monday 12 September 2016

Era uma vez aos 15 anos...

Onde se fala duma vertigem de adolescente
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Estive hoje a dar uma volta pelas redes sociais e, digo isto sem ironia, há por lá muita gente que me fascina, pessoas que tudo sabem: a toda pergunta respondem; à mínima dúvida esclarecem; a qualquer imprecisão corrigem. Alguns pontificam certezas e distribuem generosamente conselhos pródigos mesmo a quem não lhos pede. Admiro-lhes a indubitabilidade porque sou o inverso: questiono-me, duvido, equivoco-me numa eterna insegurança alimentada por uma inocência crónica. Contudo, essa voltinha pelo mundo virtual fez-me lembrar que não fui sempre assim, trazendo-me à memória um episódio triste que marcou a minha adolescência. Tinha então quinze anos.

Quinze aninhos...

Idade fronteira entre duas estações da vida, delimitada por borbulhas na cara, buço ao canto do lábio e outras irrupções hormonais, como sólidas certezas e muito pouca modéstia. Bom... E idiotices também, confesso-te que me vêm ao espírito algumas das quais não me sinto particularmente orgulhoso, por isso sou tolerante em relação à miudagem que hoje as exibe (as idiotices) com jactância despudorada. Evito sobretudo aquele famoso «no meu tempo é que era», porque havia coisas que nesse tempo não eram tanto assim. Tu também já tiveste quinze anos, não tiveste? Muita água correu sob as pontes do Catumbela desde então... E digo Catumbela porque foi o primeiro rio que vi serpentear: na cidadezinha bonitinha onde nasci não havia correntes de água, apenas mangais, vasta baía profunda e um mar a perder-se pelo horizonte curvo. E muito sol por cima daquilo tudo... 

Aos quinze aninhos era lá que morava.

Já me barbeava, recebia frascos de aftershave e água de colónia como presentes, perfumando o meu bronzeado charme tropical. É que sou caucasiano (forma politicamente correcta de dizer branco), não sei se já to confiei. E entre a gente de tez clara, como eu, há fundamentalmente dois tipos de indivíduos: os que bronzeiam a pele e os outros que ficam vermelhos como pimentões durante um certo tempo até voltarem ao branco pálido que os caracteriza. Alguns caucasianos até apresentam pintinhas que o sol assanha, adoráveis quando derramadas num corpo de mulher. Quanto a mim, bronzeio felizmente. Naquela altura dos meus quinze anos, para lá de moreno retinto, era magrinho, tinha cabelos pretos de azeviche, olhos castanhos que o sol esverdeava, uma barba precoce e um ventre chato que morreu, deixando-me profundas saudades. Tratava-se dum terreno fértil onde se ocultavam as sementes venenosas duma mansa arrogância que felizmente não chegou a germinar completamente. E se ficaram estéreis, como as que vendem as dez companhias do agro-negócio que dominam 75% do negócio mundial das sementes, foi graças a um evento traumático que um dia me abalou, atingia eu o cume da adolescência.

Conto-te...

Nesse dia fazia um sol bonito quando saí de casa depois de ter tomado um duche copioso, lambuzado as axilas de desodorizante, encharcado as bochechas magras de loção aftershave e borrifado os dois pêlos do peito com jactos nutridos de água de colónia. Ia conscienciosamente penteado, vestindo jeans ajustadas, camisa moderna com bolsos bem definidos, enfiada nas calças. Cinto largo com fivela prateada, relógio de pulso e sapatos de bico fino. Sem livro sentia-me despido, consequentemente armei-me com o Papillon de Henri Charrière, é obra volumosa, fazia boa figura.

Assim que cheguei à paragem, duas raparigas da minha idade, que já lá estavam, miraram-me com espanto e sorriram, fazendo nascer um sol novo que me incendiou por dentro. Nos autocarros da cidadezinha bonitinha onde nasci havia fiscais dos dois sexos, e o que veio picar-me o passe era uma jovem mulher bonita, escura, alta, elegante, grave, cujos olhos melancólicos me miraram com interesse, produzindo algo que nunca nela tinha visto: um sorriso! Sorriso triste, é verdade, todavia inquietante, recolhido junto ao sol que esbraseava o meu peito esquálido.

Dei-me então conta que a meu lado cavalgava um dos mais respeitados guias espirituais lusitanos: o saudoso marquês de Marialva. Considerando com aprovação a minha démarche de sedutor, escoltou-me pelos caminhos floridos do conquistador por onde eu ia bafejando eflúvios de perfumes embebidos em displicente indolência.

Houve a menina da livraria onde fui comprar cadernos que me sorriu de maneira inabitual; houve um grupinho de raparigas adolescentes em circunvolução ao redor do mercado que me trespassou com olhares viciosos e mãos nas bocas, ocultando risinhos cúmplices; houve algumas outras, desgarradas, nas quais, atento como um predador faminto, discernia uma mudança de atitude, um relâmpago lascivo nas pupilas. Já o marquês andava trotando a meu lado há algum tempo quando de nós se acercou o espírito de Dom Juan, ansioso por comigo acamaradar. Mas assim que uma loirinha bonitinha não se conteve ao encarar-se comigo, e se iluminou radiante como um céu da estação das chuvas, Casanova juntou-se à nossa súcia de matadores que já me considerava como o portador da chama da sedução que outrora tão alto tinham levantado. 

Poupo-vos a descrição minuciosa de outras manifestações contidas de júbilo a que se entregava o género feminino, rendido à minha soberba de conquistador. E não penses que só as da minha idade se compraziam a apreciar-me: mulheres feitas (uma delas casada) trespassaram-me igualmente com aqueles dardos acerados, embebidos em poções venenosas de vício puro, que tão bem sabem aguçar certas descendentes da tal Eva mítica. Marialva, Dom Juan e Casanova davam-me palmadinhas cúmplices nas costas e já os tratava por tu quando decidi prolongar o meu desfile triunfal à volta do tal mercado que, sabem os que nessa cidadezinha viveram, servia de ponto de encontro social, mas também de parada a quem necessitava de se exibir. O que era exactamente o meu caso naquele dia. Voltei a cruzar-me com algumas das conquistadas e gratifiquei outras, que ainda não tinham tido o privilégio de me admirar, com o meu esplendor. Todas reagiram da mesma maneira, confirmando o charme possante, perigoso, eclodindo dos meus quinze anos. Depois de uma hora de glorioso desfile pelo mercado e ruas adjacentes, o meu ego amansado procurou uma paragem de autocarro para regressar a casa. Evidentemente, as três amigas que esperavam o mesmo transporte não conseguiram reprimir sorrisinhos e cochichos perversos.

Mas como tudo o que sobe, cai... 

Foi precisamente nessa paragem que a bolha colorida onde flutuava rebentou com a violência das matracas da polícia de choque sobre as cabeças de jovens altermundistas tatuados. Um conhecido aproximou-se com ar inquieto e, sem mesmo me desejar os bons-dias, cochichou-me estas horrorosas palavras: «Meu... Estás com a braguilha toda aberta!»

BANG!

Dizem os sobreviventes da explosão duma bomba ou dum obus que, durante os segundos posteriores à deflagração, ficaram embrulhados num silêncio denso enquanto o mundo à volta se ia mexendo lentamente. Como num pesadelo. Foi mais ou menos o que senti... E a tal braguilha toda aberta (esquecera-me de correr o fecho-ecler quando me besuntava de aftershave, ao espelho) expunha aquela peça de roupa interior a que alguns dão o nome de cuecas (palavra rasca por causa do primeiro ditongo) e a que nós, pessoas de vocabulário elegante, chamávamos slips. E os slips que usavam os jovens modernos da época eram às cores. E o meu era dum amarelo-canário berrante, quase fluorescente, do género que a mínima fonte de luz faria brilhar no escuro... Contrastando perfeitamente com o azul das jeans! Uma bomba em forma de slips. 

Voltei para casa arrastando a cauda deprimida sobre o mesmo percurso, transformado em Calvário... Marialva, Dom Juan e Casanova viraram-me as costas com desprezo... Os sorrisos femininos apagaram-se... Fui ignorado por todos os bandos de raparigas que por mim passavam... 

Não fui à praia, fechei-me no quarto e mergulhei na leitura do Papillon, acamaradando com aquela cáfila de bandidos que pululam pelas páginas do livro do Carrière. No dia seguinte abandonei o auto-exílio na minha Ilha do Diabo para enfrentar o mundo com menos arrogância.

Com o tempo tornei-me mais observador e dei-me conta que o planeta está a abarrotar de pessoas bem-intencionadas que nos respondem, esclarecem e corrigem com a certeza dos que nunca tiveram um par de slips amarelo-canário expostos aos risos dos outros. Ou pior: ao escárnio das outras! Essas pessoas pertencem a todos os sexos, religiões, profissões, orientações sexuais, extractos sociais e andam por aí à solta postulando verdades, certezas e convicções. Não é por isso que se tornam más, muitas delas são generosas e altruístas, honestamente convencidas que apregoam a Verdade. Contudo, ao aperceber-me de alguns paradoxos, incoerências e absurdos que debitam com imodéstia e que uma sincera presunção lhes impede de enxergar, dá-me uma gana enorme de lhes cochichar ao ouvido

– Meu... Estás com a braguilha toda aberta! 


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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE


Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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