Monday 1 February 2016

(Pato)logia dos preconceitos

Onde se fala de discriminações e se propõe um slogan contra um pato.
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«Pato só há um, o Donald e mais nenhum». 

Foi a frase que me veio à cabeça há uns dias atrás. Teria sido concebida pelos irreverentes anarquistas, aquando dumas eleições presidenciais portuguesas dos anos setenta, para azucrinar o candidato Octávio Pato. Foi por associação de ideias que me lembrei desse antigo slogan. Por causa doutras eleições em curso no poderosíssimo país ao sul deste onde vivo. Há por lá um candidato com nome de palmípede do Walt Disney, Donald, capaz de trombetear um impressionante chorrilho de asneiras e preconceitos num curto lapso de tempo.

Como essa eleição é do foro do showbiz, não consigo abstrair-me dela. Foi assim que li notícias que me deixaram banzado: há eleitores hispânicos e negros prontos a votar no dito cujo com nome de pato! Estamos sempre a aprender, não estamos? Imagina: Indivíduos pertencentes a comunidades vítimas de discriminações abomináveis, apoiam um homem que grasna intolerâncias sem vergonha na cara! Tão rasca que até a águia americana o atacou. Como diz o R.J. Ellory no excelente policial «The Anniversary Man» (não encontrei versão portuguesa), não se pode racionalizar o irracional.

Racionalizar... Veio a propósito! Fez-me pensar nos utensílios que ajudaram os nossos antepassados carvernícolas a domesticar o fogo para assar mamutes. Como os historiadores ainda não tinham sido inventados, não sabiam que se arrastavam por longos e obscuros paleolíticos. Levaram milhares de anos a catar dados que processavam empiricamente, observando, catalogando, reflectindo. Procedi da mesma maneira, mas com uma enorme diferença: vivo na era da informática! Em vez de milhares de anos, bastam-me dias para colectar as minhas informações. Olha... Dispersei-me... Estava a falar de quê? Ah... De preconceitos! Das minhas buscas sobre o assunto.

Como toda a pesquisa que se respeita deve começar pela compreensão dos seus elementos essenciais, perguntei aos especialistas dos vocábulos o significado de «preconceito». Dado que a Porto Editora só me forneceu três escolhas, optei pela Priberam que tem quatro:

1. Ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial.
2. Opinião desfavorável que não é baseada em dados objectivos. = intolerância.
3. Estado de abusão, de cegueira moral.
4. Superstição.

À luz destas explicações ficaste de acordo comigo, não ficaste? Alimentar preconceitos é feio! Há mesmo quem diga que nos sujam interiormente. «Caiu-me a alma à latrina, preciso de um banho por dentro»(1), é uma magnífica frase de Eça de Queirós que não resisto a citar. Num contexto totalmente diferente, de acordo, mas tem cabimento aqui, não tem? Francamente... Olha só para mim... Para aqui a dar palpites... E eu? E os meus preconceitos? Para ser honesto (e a contragosto) fiz-lhes a lista, reflecti, recordei-me de como os fui lavando enquanto crescia (conservando os que achava úteis). Contudo não me felicites, o processo nada teve de heróico: foi por mangonha! Sendo ideologicamente preguiçoso, cultivo o ócio como ferramenta necessária ao progresso da humanidade. De preferência recostado num sofá confortável, pernas esticadas, uísque velho nas unhas, tigela de cajus pousada no peito, livros à volta e computador à mão de consultar.

E assim, beberricando uísque, lendo, consultando e reflectindo, cheguei a algumas conclusões, a que outros já chegaram necessariamente mas que, para me mostrar interessante, partilho contigo:

1. Não é porque lutamos contra alguns preconceitos, que estamos isentos dos demais.
2. Ninguém nasce com preconceitos, eles adquirem-se por contágio e/ou por herança.
3. Preconceitos são plantas daninhas que nascem nas lavras do medo e da ignorância.

A preguiça é uma coisa fantástica! A quantidade de coisas que se descobrem com o corpo totalmente em repouso. Olha algumas delas. A malha cerrada de preconceitos e discriminações não impediu a Marie Curie (mulher, francesa, origem polaca) de ganhar dois prémios Nobel; a Alice Parker (mulher, negra, americana) de inventar a fornalha central de aquecimento; o George Washington Carver (negro, americano, nascido escravo) de revolucionar a agricultura do midwest americano; o Alan Turing  (gay, britânico) de ser o pioneiro das ciências informáticas; o Bayard Rustin (negro, gay, americano) de organizar a famosa marcha Luther King pelos direitos cívicos; o James Baldwin (negro, gay, americano) de escrever «Notes of a native son»; a Ma Rainey (mulher, negra, americana, bissexual) de nos legar o blues; a Antónia Adelaide Ferreira (mulher, portuguesa) de inovar o vinho do Porto; a Angela Merkel de andar a chatear toda a gente e a Marine Le Pen de sair ao filho da mãe do paizinho dela.

Isto é uma amostra insignificante de coisas importantes que devemos a alguns humanos vítimas de preconceitos. Imagina se não houvesse segregação, o que não teria sido descoberto. É a lógica, não a ideologia, que me leva a afirmar que os preconceitos deveriam ser proscritos. Ah! Mas atenção! Como diz o ponto 1, não é porque alguém combateu preconceitos que os não tem. Já se viram heróis da luta contra o racismo discriminarem outros grupos de humanos assim que se apanharam em posição de poder. Lutar pela liberdade não significa lutar pela Liberdade, na maior parte das vezes luta-se pela fatia dela que nos convém. Pelo menos é o que eu acho...

Para emprestar um ar de ciência às minhas pesquisas, inventei a «Matriz dos Preconceitos» que me deu uma grande canseira. Repara bem nela. Na vertical há quatro grupos de Humanos: 1. homens heterossexuais; 2. mulheres heterossexuais; 3. homens gays; 4. mulheres lésbicas. Cada um pertence a três raças diferentes: verde, laranja, violeta. Na horizontal encontramos os mesmos elementos, salvo o título: Preconceitos. O objectivo é catalogar as intolerâncias que acalentamos uns em relação aos outros. Os valores de 0 a 10 representam a força do preconceito.

Para exemplificar, preenchi eu mesmo as três primeiras linhas correspondentes a três homens, de três raças diferentes, do tipo que conheço melhor e do qual faço parte: machos heterossexuais. Na realidade cada um preencheria uma única linha antes de passar a matriz a outro(a).


Analisemos!

O verde não tem preconceitos contra os homens verdes, é lógico, é a raça dele. Não gosta dos laranjas, mas tolera-os. Dá-se bem com a raça violeta. A coisa muda de figura quanto aos gays de todas as raças, não pode com eles nem com molho de tomate, atribuiu-se um 10, nota máxima do preconceito. Já as lésbicas não o incomodam tanto, se calhar até rumina fantasmas velhacos em relação a elas.
O laranja é atroz. Detesta homens e mulheres das outras cores embora conceda algum valor às da sua própria raça. No que diz respeito a gays e lésbicas, é a intolerância total. É machão, racista, misógino e homófobo.
O violeta é uma paz de alma, aquilo é viver e deixar viver, é cool do género peace and love. Verde ou laranja, mulher ou homem, gay ou lésbica, nada o incomoda, é amigo de toda a gente. Um campeão do politicamente correcto!

Até aqui está tudo claro, não está? Já vimos homens desses três tipos. Mas onde a porca torce o rabo, é quando um gay de raça verde, por exemplo, detesta tudo o que é de cor contrária. Um gay racista! Já trabalhei com um deles, um jovem loirito e feioso, coitado. Queixava-se da discriminação dos homófobos, mas era intolerante em relação a quem tivesse epiderme mais escura que a dele (assaz pálida por acaso) e olhinhos amendoados. Mas voltemos à matriz. Preenchida por milhares de pessoas, seguindo uma metodologia a determinar, obter-se-ia uma amostragem estatística significativa, permitindo a percepção da «intensidade preconceitual» duma certa região. Uma fonte de dados para gerar gráficos coerentes sobre a repartição das intolerâncias. Serventia? Várias. Um exemplo ao deus dará: Permitiria aos políticos o ajustamento dos discursos eleitorais aos preconceitos dominantes duma circunscrição específica.

A matriz é uma proposta de trabalho, está à vontade, completa-a com outras «intolerâncias preconceituais» (fui eu quem inventou a expressão, estou todo vaidoso, faz-me um favor: se a utilizares, cita-me). Adiciona-lhe, por exemplo, os fanatismos (ódios) religiosos que explodem em todos os azimutes. Há alguns vocábulos oficiais para isso, outros inventei-os: ateofobia, budofobia, cristianofobia, hinduofobia, islamofobia, judeofobia, sikhofobia, tocofobia(2), etc...

Ah! Ia-me esquecendo. Sempre de copo de uísque nas unhas e cajus no peito, descobri que existe um «preconceito dominante» (expressão igualmente da minha autoria, sinto-me particularmente dotado hoje) difícil de extirpar mesmo tomando o tal «banho por dentro» do Eça. Trata-se dum preconceito cuidadosamente seleccionado, que varia em função da época e/ou do território, que nos coloca num «estado de abusão, de cegueira moral», propício para bem seguir (=servir, submeter-se a) quem nos guia e manipula.

Depois destas pesquisas todas, imagina tu que voltei ao ponto de partida e continuo sem resposta à pergunta inicial: porque é que há hispânicos e negros prontos a votar no gajo com nome de palmípede de banda desenhada? Telefonei àquele meu amigo avinagrado, incrédulo e cínico, o Rebenta Balões, para lhe pedir ajuda. Mas ao pronunciar o nome do tal Donald que se exibe pelo showbiz eleitoral daquele país poderoso, interrompeu-me, gritou uma palavra feia, um «PATA QUE O LAMBEU» e desligou-me na cara!

No fim de contas fiquei desconsolado com os resultados mitigados das minhas pesquisas. Todavia, para que elas não fiquem em letra-morta, olvidadas, inúteis, extraí-lhes duas coisas: Uma espécie de teorema e um slogan (inspirado na frase dos anarcas com que abri este artigo).

Teorema:
«A força da liberdade individual é directamente proporcional à fraqueza dos preconceitos»

Slogan:
«Donald só há um, é o pato e mais nenhum»

Bonis nocet qui malis parcet (3)


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_(ツ)_  
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(1) QUEIRÓS, Eça, Os Maias, Lisboa, 1888. 
(2) Aversão ao movimento religioso angolano fundado por Simão Gonçalves Toco.
(3Quem poupa os maus, prejudica os bons.
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© Carlos Taveira



LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE



Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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