Tuesday 4 October 2016

Anastásia: a bela e os brutos

Onde se fala dum Sol loiro de Verão que se apagou...
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Foi a 13 de Setembro de 2006...

Se vives no Canadá, já ouviste falar dela, Anastásia Rebecca de Sousa de seu nome completo. Anastásia é nome de princesa, nome bonito como ela era. Como ela era ou é porque a mãe, quando parte em viagem, ainda hoje lhe diz: «Faz as malas, vamos de férias». Se vives no Canadá muito provavelmente também já ouviste falar dele, Kimveer Singh Gill de seu nome completo, Kimveer para a família e amigos, que parece não ter tido muitos. Anastásia e Kimveer tinham duas coisas em comum: Os pais de ambos emigraram de países distantes (Portugal e Índia) e nasceram ambos no Quebeque, respectivamente dezoito e vinte e cinco anos antes de se encontrarem diante dum colégio chamado Dawson, em Montreal.  

Não conheci nem uma nem o outro, vi-lhes as fotografias na televisão e na Internet: Anastásia sorridente como um Sol loiro de Verão, com cara de alguém que adora trazer boas notícias; Kimveer sombrio e ameaçador como um dia de trovoada. Algures, apresentava-se como um anjo da morte: «Odeio o mundo, odeio as pessoas que o habitam, odeio Deus [...], odeio tudo... Odeio tanto...» (I hate this world, I hate the people in it, I hate God [...], I hate everything… I hate so much…)

Kimveer acalentava uma paixão por armas de fogo que comprava legalmente: não é proibido aos cidadãos, mesmo aos que odeiam tudo e muito, de as adquirirem desde que não caiam na classificação de armas restritas ou proibidas. As de Kimveer eram não restritas. Entre as características que levaram o legislador a classificar uma carabina ou uma pistola numa ou noutra das categorias, há uma (característica) que delas não faz parte: que não mate humanos. E não pode ser de outra maneira, dir-me-ás tu, porque se é arma e tem balas, é para matar que foi concebida. Que faria uma carabina de caça grossa, nas mãos dum caçador, se não matasse? 

Acontece que Kimveer não era caçador.

Se o fosse não teria adquirido a Beretta CX4 Storm, cujas qualidades são gabadas pelo fabricante na página Internet onde a promove. Seja qual for o uso que se lhe dê, «defesa domiciliar, caça aos pequenos animais, competição e treino» (home-defense, varminting, competition or training), não desiludirá (will deliver what it promises). Varminting é uma expressão norte-americana que significa caça aos pequenos mamíferos (esquilos, ratos, marmotas) mas não só. Abrange tudo o que ameaça as plantações (pássaros) ou o equilíbrio do ecossistema. Ficamos assim a saber que os altos gestores da Fabbrica d'Armi Pietro Beretta se preocupam com a ecologia e que a Beretta CX4 Storm foi uma das soluções encontradas para o problema. 

Kimveer, competente no gatilho, treinava-se legalmente e regularmente num clube de tiro de Lachine com a Beretta CX4 Storm. Possuía outras armas, igualmente compradas sem infringir a lei, contudo a Beretta CX4 Storm devia ser a sua preferida. Utilizou-a para matar Anastásia com 5 descargas, ferindo dezanove outros humanos com 67. Setenta e duas balas disparadas facilmente porque a Beretta CX4 Storm, além de ser «extremamente versátil» (extremely versatile), é «fácil de utilizar» (easy to use): arma ideal «para quem não tenha grande experiência com um fuzil ou carabina» (for those who may not have extensive experience with a rifle or carbine). É o fabricante quem o diz na página Internet onde vangloria as qualidades do produto. Essa publicidade deve ter tocado Kimveer numa corda sensível, por ela se apaixonou e com ela disparava ódios contra alvos em cartão. Antes daquele dia, onde matou beleza, disparava sem infringir a lei, garante o pai que, devastado pela dor de ter criado um filho assassino, que destroçou a família de Anastásia, jura que nunca teria permitido armas ilegais em casa. 

Como a lei permite... 

A lei deixa comprar armas, consente na sua utilização em clubes de tiro, autoriza o seu transporte dentro de certas condições, consequentemente a lei enquadrou a Beretta CX4 Storm. Suspeito eu que foi concebida para matar humanos, não caça ligeira, senão vejamos: mais de 68,000 foram encomendadas pelo Border Security Force da Índia, cerca de 1,900 pela Líbia de Muammar al-Gaddafi, sendo ainda utilizada pelo Sheriff's Department em Albany nos EUA e na Venezuela pela Guardia del Pueblo. Tudo isto organizações policiais, militares ou paramilitares que, segundo as últimas notícias, nunca se dedicaram a caçar esquilos, marmotas ou gralhas desordeiras. É portanto uma arma que nas mãos dum psicopata pode causar estragos irreparáveis e apagar sóis loiros dum Verão sorridente. E para que a lei deixe, consinta e autorize, foi porque alguém, eleito por nós, assinou documentos que permitiram àquela Beretta CX4 Storm ter sido empunhada por um homicida que o ódio embruteceu. O qual, perante a lei, foi o único responsável pela tragédia que causou, porque matar, isso sim, a lei sanciona. 

Mas a lei não sancionou Kimveer Singh Gill.

Embrutecido, deprimido, insensibilizado, arrastando ódios, fuzis e saco de balas, acossado pela polícia nos corredores do colégio, depois de matar e ferir... Matou-se! E matou-se com facilidade porque, como diz a promoção do fabricante: «Esta carabina, leve e compacta, foi concebida para se adaptar facilmente às necessidades da maior parte dos atiradores» (This light and compact carbine was designed to be completely and easily adaptable to the needs of most shooters). E como as necessidades do atirador, de apagar beleza, estavam satisfeitas, veio-lhe uma outra: apagar-se! Kimveer assassinou e suicidou-se com a mão esquerda ou direita? Não sei. Mas sei que, num caso como no outro, a eficiência do atirador não seria prejudicada: o fabricante daquela Beretta CX4 Storm, atento às necessidades do consumidor, garante que o produto foi concebido para dar a «oportunidade de treino a destros e a canhotos» (opportunity to train or shoot right- or left-handed). E o fabricante tem razão: Kimveer não teve problemas em pôr fim aos seus dias! 

Quem assinou os documentos que deixaram comprar, consentiram na utilização, autorizaram o treino, enquadraram o transporte daquela Beretta CX4 Storm, manufacturada pela Fabbrica d'Armi Pietro Beretta (entre as 1,500 armas produzidas por dia) fê-lo seguramente vestido de fato e gravata, empunhando uma caneta aparentemente inofensiva com a qual desenhou com desembaraço uma assinatura elegante a tinta azul. E ao autorizar a compra e a utilização (dentro de certas condições) daquela arma de matar pessoas, o político teve a precaução de se assegurar do comprimento do cano, detalhe importante, fronteira entre arma de guerra e arma desportiva. Para proteger os inocentes dos brutos. 

Infelizmente, Anastásia não foi protegida pela lei dos eleitos. 

Mas como a lei tem pernas para andar... Após a tragédia, consequente repercussão mediática e efeitos negativos sobre os eleitores, o poder agiu, desatarraxou a tampa da caneta elegante e assinou restrições que praticamente baniam a arma delinquente. Era mal conhecer as boas intenções dos astuciosos gestores da 
Fabbrica d'Armi Pietro Beretta: aumentaram o comprimento do cano para 19 polegadas! Eis a Beretta CX4 Storm de volta à cobiçada categoria não restrita. Genial, não achas? Sobretudo porque, após o tiroteio em Dawson, onde Anastásia deixou de sorrir como um Sol loiro de Verão, a procura da arma que a matou conheceu um significativo aumento. 

Foi, no fundo, um bom negócio.

Será que, tirando Kimveer em 2006, haverá neste momento outros brutos a disparar ódios legais sobre alvos em cartão? Porque os que promovem as vendas, permitem as compras, autorizam o uso das armas de matar sorrisos, nada têm de brutos: uns são negociantes, outros são políticos eleitos, gente reflectida, preocupada com a nossa segurança. E se não acreditas, aqui está a prova. Na página do fabricante que gaba os talentos da Beretta CX4 Storm há um apontador em rodapé intitulado: «A nossa primeira prioridade é a sua Segurança» (Our first priority is your Safety). Ali encontrarás orientações judiciosas sobre os cuidados a ter quando manipulas uma Beretta. Remetendo-te a responsabilidade que antes assumiu, o fabricante dirige-se a ti numa polida segunda pessoa: «Sua primeira prioridade deve ser a sua segurança e a segurança da sua família». Conselho que Kimveer seguiu ao pé da letra. 

Seguem-se quatro outros, em palavras começadas por maiúsculas:

   1) Trate As Armas De Fogo Como Se Estivessem Sempre Carregadas;
   2) Mantenha O Seu Dedo Fora Do Gatilho Até Estar Pronto A Disparar;
   3) Certifique-se Do Alvo Pretendido E Do Que Existe Para Além Dele;
   4) Nunca Aponte Uma Arma Contra O Que Não Quiser Alvejar;

Recomendações que o assassino respeitou escrupulosamente.


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A nossa primeira prioridade 
é a sua Segurança
Sua primeira prioridade deve ser a sua 
segurança e a segurança da sua família 

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A propósito
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© Carlos Taveira



LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Assim Escrevia Bento Kissama, Romance, Português, Guerra e Paz, Editores, Lisboa, Portugal, 2019, 296p, ISBN: 9789897024764 

São Paulo, Prisão de Luanda, Memórias, Português, Guerra e Paz, Editores, Lisboa, Portugal, 2019, 176p, ISBN 9789897024511 

Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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