Wednesday 29 July 2015

O jovem canalha do autocarro

Onde um adolescente educadíssimo decidiu que eu era velho
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Olha meu camba, estou a ficar velho. Deveras. Tive a prova disso no autocarro. Não é por motivos ecológicos que ando nos transportes públicos. Mas não tenho nada contra a ecologia, note-se, até lhe dou a minha contribuiçãozinha. Reciclo as garrafas de cerveja e coloco as de vinho no alto do contentor - há uma senhora que nos dias de reciclagem passa com o carro e leva o vasilhame. Esqueci-me que tenho impressora e não envio para o lixo dezenas de folhas por dia como vejo alguns colegas fazer aqui no escritório, um desperdício. Mas acho que estou a divagar, meu camba. Estava a falar de velhice e não de ecologia, dois assuntos diferentes. A menos que nos dê para reciclar velhos, olha que boa ideia, até dava um romance de humor negro. Fica anotado.

Adiante!

Adiante porque a vida é sempre a avançar e o envelhecimento não pára mesmo quando nos imobilizamos. Até é pior. Paradoxal, né meu camba? Um corpo em repouso deveria economizar músculos e células segundo a lógica simplista (falta-me formação científica) que o que não é usado não se gasta. Mas não... Ficar de molho não ajuda! Conheço um tipo da minha idade que não parou de se mexer até hoje, aquilo é futebol e natação e ginásio e marchas forçadas (evita o jogging para não gastar os joelhos) e frutas e legumes e ioga e meditação... Enfim, isto para te dizer que esse tipo da minha idade anda tão bem conservadinho que até engatou uma namorada quinze anos mais nova. A rapariga não é lá duma grande beleza, é verdade, mas tem um corpo de atleta e esse tipo que tem a minha idade também se interessa por atletismo. De onde se conclui que a saúde do corpo é como a saúde económica: quanto mais rolam melhor se comportam. Sou tão preguiçoso para exercício que quando era novinho escolhi três desportos que se praticam deitados ou sentados: natação, remo e caça submarina. Esta última era a minha actividade preferida porque podia ficar a boiar de barriga para baixo, à espera do peixe. Uma vez até adormeci. Mais tarde, para ficar com a forma daquele tipo que é da minha idade, que tem uma namorada muito mais nova, fiz um grande esforço e dediquei-me a outras actividades onde era preciso saltar e correr e dar pontapés. Acho que foi isso que me envelheceu prematuramente senão nunca tinha passado por aquela humilhação no autocarro.

Bom... Estava a evitar, mas é preciso abordar a parte difícil!

Entrei eu no autocarro com o meu passo elástico, vestido de jeans, t-shirt e sapatilhas à moda quando reparei que não havia lugar sentado. Fiquei logo de mau humor porque, como vos disse, adoro sentar-me e deitar-me, são as minhas posições predilectas e quanto à horizontal tanto faz que seja de costas, de barriga para o ar ou de lado. Tive uma namorada que se zangou comigo porque tinha um jardim e estava convencida que seria normal utilizar as minhas mãos bem tratadas nessa trabalheira de arrancar ervas daninhas e adubar a terra. Ficou muito admirada quando se deu conta que eu ficava sentado um terço do dia a escrever, outro terço deitado a ler, posição que conservava até ao terceiro terço quando apagava a luz para dormir, o que completava o meu ciclo circadiano... Desiludiu-se! Olha, meu camba, inevitavelmente deu-me com os pés, como fizeram todas as outras. A minha namorada actual que (ainda) não me deu com os pés, também tem jardim, mas não me mobiliza e até acha bem a divisão tripartida do meu dia de trabalho. Tenho a impressão que isso sim, é o tal amor, coisa difícil de compreender.

Ah... O autocarro!

Como dizia, entrei no autocarro com passo elástico para parecer mais novo como aquele tipo que tem namorada mais nova uns quinze anos, quando reparei que todas as cadeiras estavam ocupadas. Fiquei logo mal disposto. A minha contrariedade, no entanto, caiu no olho dum canalha duns quinze anos, do tipo educado com esmero em colégios privados. Todo muito bem vestido, com sapatos de verniz, calcinha bem ajustada, vincada, gravatinha, bem penteadinho, óculos redondos estilo Harry Potter. Estás a ver o género, não é meu camba? Na escola, quando o professor lança uma pergunta à turma, deve ser o primeiro a levantar o dedinho para responder. E responde a tudo porque é muito bom estudante. Um graxista! Não é que o grandessíssimo @#|~& se levanta para me dar o lugar? Com uma veniazinha aristocrata do tempo do Luís XIV e tudo... Com um «monsieur» de respeito e tudo... Como se eu estivesse prestes a cair apoiado a uma bengala... Como se estivesse a babar-me e a tremer... Como se estivesse senil! Até fiquei com a impressão que todos os passageiros do autocarro me olhavam com caridade. Só uma vez na vida, durante a minha primeira comunhão, fiquei tão encavacado quando um padre brutamontes me prometeu um par de estalos diante do altar. Bofetões que de boa vontade teriam sido transferidos às bochechas rosadas do adolescente bem educadinho. Mas retive-me e atirei-lhe um seco «non merci» que lhe martelou no peito e o devolveu ao assento.

Continuei furioso, é claro, e foi aí que me lembrei duma monografia do mestre budista Thich Nhat Hanh. Segundo ele, para recuperar a calma perdida a seguir a um acontecimento traumático, devemos colocar a mão aberta no ventre e respirar fundo : «inspiro sei que inspiro, expiro estou calmo». Deu certo! O canalha conservou a sua integridade física e eu recuperei um pouco do meu orgulho. Mas não todo. Como consequência fui tentar o budismo, não para me acalmar mas para ver se rejuvenescia. Tira o cavalinho da chuva! Os mestres zen disseram-me que era preciso aceitar os ciclos da natureza.

Olha, meu camba, continuei descrente!


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© Carlos Taveira



LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE



Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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