Saturday 16 November 2019

À loira de vermelho que me roubou um livro

Ou como fui alvo de um raro privilégio
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É, nem tudo está perdido, ainda há quem roube livros. Aconteceu-me na cidade de Quebeque, capital da província do mesmo nome, lá onde o Canadá começou. A sociedade de genealogia da província convidara-me para falar sobre Pedro da Silva dit le Portugais, bravo lisboeta que ali se radicou por volta de 1673 e por lá se casou com a jovem Jeanne Greslon dite Jolicoeur, espigada canadiana de Château Richer com quem teve 14 ou 15 filhos. Atenção, não te inches de orgulhoso patriotismo com a performance do compatriota lusitano, aquilo era comum na época, mesmo franceses e ingleses eram capazes de tal façanha. Pedro foi o primeiro mensageiro do rei (Luís XIV) do Canadá na Nova França e transportador geral de mercadorias que distribuiu, tal como o correio, entre Montreal e Quebeque sob o ataque dos insectos vorazes no Verão e dos frios assassinos do Inverno. Tudo isto arriscando a vida numa guerra entre ingleses e franceses com índios nos dois lados. E aquela prole fez do lisboeta o antepassado da numerosa família canadiana Dassylva que muito o venera ao ponto de um deles (antes da Internet) se ter deslocado a Lisboa para verificar se ainda havia por lá quem se chamasse Silva.

Como vês, entusiasmo-me quando dele falo, imagina numa conferência com slides, micro, grande sala, assistentes e tudo. E como tinha escrito (e publicado) um livro sobre o personagem, havia-os à venda. Depois da conferência e sessão de autógrafos, encontrava-me em amena cavaqueira com alguns dos assistentes quando a irmã da minha companheira me perguntou se aquela senhora com muito bom aspecto, loira de casaco vermelho, viera à assinatura dado que à caixa não. Lembrava-me muito bem dela. A qualquer conferencista masculino heterossexual não passaria despercebida a senhora loira com (muito) bom aspecto, atentíssima à conferência. Pois estava tão interessada no nosso Pedro que decidiu levá-lo sem pagar. O furto foi confirmado quando, feitas as contas, se verificou a falta de um exemplar. Quem me acompanhava não ficou contente: «Nem numa conferência, vejam lá», indignava-se uma; «Até livros roubam», juntou a segunda; «É preciso ter lata», finalizava a terceira.

E eu? Pois admira-te... Eu exultei!

Não vi neste sublime gesto de roubar literatura um acto condenável. Seria quiçá pessoa vivendo momentos de stress financeiro e que, obrigada a escolher entre o alimento do espírito e o do corpo, decidiu satisfazer com dignidade os dois, não pagando o primeiro. Decisão judiciosa: é seguramente mais fácil sair de uma sociedade de genealogia sem pagar um livro que de um restaurante sem pagar a conta. Foi também uma première para mim. Antes daquela noite nunca fora roubado. Nem uma televisão na casa de Angola, nem um carro no aeroporto de Montreal, nem sequer uma nota de vinte nos eléctricos 12, 15 e 28 em Lisboa, a abarrotar de carteiristas nacionais e estrangeiros. 

Livros, então, nunca correram riscos. Já os deixara em evidência em carros com a porta aberta... Encontrei-os lá! Já me esquecera de obras literárias sobre mesas de café e os empregados guardaram-nas! Já lera policiais caros em locais cheios de bandidos e nunca mos furtaram. Nunca fui roubado, é verdade, mas já fiz mão baixa de algo que não me pertencia.  Guarda isto para ti, não quero dar maus exemplos aos meus netos. Eu conto. Foi na sala de espera de um consultório médico que os meus olhos caíram sobre uma revista de História, abandonada, coitadinha, a um canto da estante. O coração encheu-se-me de ternura e compaixão pela revistinha e perguntei-me qual seria o fim de criatura tão sábia, provavelmente despedaçada, rasgada impiedosamente, folhas amachucadas para limpar os vidros da Primavera. Revoltado contra tamanha crueldade, tomei a decisão de lhe poupar a triste sina. Como quem não quer a coisa dobrei a revista, instalei-la no bolso interior do casaco e abandonei a sala de espera assobiando com naturalidade. Ninguém se deu conta. E como a aventura se passou antes da massificação dos telemóveis, os demais pacientes liam revistas de moda. Revistinha é bem tratada e vive dias felizes na companhia das manas revistas e manos livros, legalmente comprados e adoptados. E a tal ponto não faço diferença entre eles que já me esqueci quem foi a roubada e quem foram os adquiridos. Eis porque tenho a certeza que o exemplar do Pedro da Silva conhece a mesma sorte e vive feliz ao lado dos congéneres numa bela estante indisciplinada e que de lá só sai para alimentar o espírito de quem ainda é assaltado por esse tipo de fome. 

Desconheço quase tudo a propósito da dita senhora que me subtraiu, com tanta graça, o livro que escrevi há muitos anos. Era loira, bem penteada, cuidava do seu aspecto, tinha casaco vermelho e sentou-se diante de mim para ouvir falar de Pedro da Silva dit le Portugais. E ficou-me o sentimento que o primeiro mensageiro da Nova França teria estoirado de orgulho se soubesse que fora raptado por uma bela senhora de Quebeque, cidade que muito amou e onde se reproduziu galhardamente.

A conferência tendo sido proferida em francês, haverá poucas probabilidades para que a senhora loira do casaco vermelho venha a ler este artigo. Todavia, no caso improvável de ser lusófona e estas linhas lhe caírem sob os olhos claros, saiba que o seu gesto enaltece a literatura e não hesite em trazer-me o produto do seu latrocínio, concedendo-me o privilégio de o dedicar: «À senhora loira de casaco vermelho que, na mui nobre e antiga cidade do Quebeque, correndo risco de ser acusada de ladroagem, se apoderou desta obra, esperando que a qualidade da mesma esteja à altura das suas expectativas. E não hesite em apoderar-se de outro dos meus livros se a necessidade apertar e a oportunidade se lhe apresentar: ser roubado por uma amante da literatura é raro privilégio».



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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Assim Escrevia Bento Kissama, Romance, Português, Guerra e Paz, Editores, Lisboa, Portugal, 2019, 296p, ISBN: 9789897024764 

São Paulo, Prisão de Luanda, Memórias, Português, Guerra e Paz, Editores, Lisboa, Portugal, 2019, 176p, ISBN 9789897024511 

Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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