Wednesday 16 May 2018

O assédio do fantasma Algarvio

Onde se conta a história vivida de uma alma penada
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Hoje é de fantasmas, almas penadas e coisas afins que falamos. Talvez nem existam, mas os espanhóis garantem que «Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay» enquanto os ingleses, na sua lógica fria, pretendem que cada castelo britânico que se preze abriga o seu fantasma. Em África abundam («Tem cazumbi», ouvi bastas vezes dizer) e até emigraram nos porões dos veleiros, para consolar milhões de escravos agrilhoados e fazer carreira do lado de lá do Atlântico. Mesmo o Facebook, propriedade daquele milionário com cara de reguila simpático, não escapa à infestação das almas penadas, fantasmas pavorosos e exorcistas de todo o género. Exemplo: posta-se a fotografia de uma criança em crise, diagnostica-se-lhe possessão e receitam-se-lhe chapadas. 

Até onde a memória do nosso passado alcança, chegam-nos ecos de seres do outro mundo, alguns protectores, outros vingativos. Se um dia virar alma penada, hei-de transformar-me em vírus de computador, assombrando discos rígidos de políticos e juízes, destruindo-lhes os cadeados e derramando por esse mundo fora coisas que muitos de nós gostaria de saber e aquelas que evitamos, para não mancharmos a reputação dos nossos heróis preferidos. Porque isto de verdades tornou-se coisa complicada, a mentira é cristalina, acessível, de fácil manipulação e sem necessidade de provas: basta repeti-la assiduamente para convencer quem quer ouvi-la. Não te vás embora que não estou aqui para analisar lógicas binárias, é de fantasmas que te venho falar...

Faço outro parêntesis para precisar significados, no caso de utilizares o francês como língua alternativa. Já alguns francófonos (e francófonas) muito se riram de mim quando, todo contente, lhes falei no meu fantasme pessoal, objecto deste artigo. É que na língua de Molière a coisa não tem o mesmo significado que na de Camões. Na primeira significa literalmente fantasma sexual (o outro diz-se fantôme), enquanto na segunda, quando de sexo se fala, deve precisar-se-lhe o intento. A mais antiga alma penada que a minha parca memória registou podia levar à confusão entre os dois fantasmas, porque se trata de uma costureirinha que se revelou em várias cidades daquele rectângulo à beira mar espigado. As lendas divergem, a mais corrente diz-nos que a dita moçoila, aquando em vida, não cumpriu uma promessa feita ao possante São Francisco (nome escolhido pelo actual papa). Consequência: dado que com santos não se faz farinha, a infeliz, ao morrer, foi condenada a dar ao pé no pedal da Singer para a eternidade... Em vez de se divertir a dar com os pés aos pretendentes como me fizeram (quase) todas as minhas namoradas. Que, aliás, não perdem pela demora, esperem que passe para o outro lado da linha do horizonte, me transforme em vírus Cazumbi e me infiltre nos vossos computadores. Hei-de saborear as calúnias que, sobre mim, escreveram umas às outras... Regalo-me antecipadamente com a vingança! 

Lá estou eu a divergir, tenho dificuldade em perseguir objectivos, prefiro perder-me por estradas nacionais (a não confundir com nacionalistas) à esquerda e à direita, embora tenha as minhas tendências. Acho tedioso guiar por auto-estradas com destinos preestabelecidos e altos cartazes de propaganda pelo caminho. É monótono, aquilo é seguir adiante obedecendo aos sinais, sem olhar para os lados, evitando o contacto com povoados pobres, lagos poluídos e florestas carbonizadas, não vá a miséria deste mundo distrair-nos do que é essencial: a eficiência (ou a eficácia?) na manipulação do veículo! Olha que chatice... Persisto em derivar! Se continuo assim vou ter de dividir isto em duas partes, coisa que detesto quando leio e me deparo com aquele infame: a continuar no próximo artigo... 

A coisa aconteceu-me era eu de idade curta, na casa dos meus avós. Em Faro, por uma razão simples, é que eles eram algarvios e um algarvio volta sempre ao seu Algarve. Estava eu por lá a passar uma feliz temporada, eram passeios sob os galhos das amendoeiras em flor, diversões nas feiras e visitas à ilha, ainda poupada pela avalanche de turistas, o único incidente infeliz do qual fui vítima (antes da assombração) tendo sido uma dolorosa ferradela de abelha no pescoço. Era muito menino para pensar (e sobretudo falar) contra ou a favor de um indivíduo sobre o qual as opiniões divergiam, homem bem penteadinho, calçado com botas-de-elástico e a quem o Vilhena da Gaiola Aberta chamará um dia fantasma (na acepção portuguesa do termo) de Santa Comba Dão! Embora já fosse fantasmagórico para muita gente, ainda não se transformara em alma penada. Não foi ele, portanto, quem me amargou as madrugadas. 

Apesar de já ser inocente, a minha ignorância não ia ao ponto de não saber o que era um fantasma. Não porque tivesse visto algum em carne e osso, passe a expressão porque se é espírito de morto não tem substância terrena. O meu conhecimento sobre o mundo dos espíritos vinha de conversas catrapiscadas entre adultos e de um livro sobre espectros, surripiado numa estante lá de casa. Repousava ao lado de um outro que me acompanhou toda a vida, uma recolha de poemas de António Aleixo, poeta cauteleiro algarvio que morreu encharcado de pobreza e tuberculose, vendendo ao desbarato riquezas deste género: «Sei que pareço um ladrão / Mas há muitos que eu conheço, / Que, não parecendo o que são, / São aquilo que eu pareço

Voltemos às almas penadas. Como dizia, travei conhecimento, teórico, com fantasmas vários, inclusivamente com mouras de uma época esquecida em que o Algarve se chamava Al-Gharb (Oeste em árabe). Tratava-se de morenas de rara beleza e olhos enormes, negros, inquietantes, que deixaram doces recordações aos cristãos que as expulsaram, gerando bastos fantasmes (na acepção francesa do termo) nos homens e lendas de mouras encantadas na população em geral. Tem-se assistido ultimamente ao regressar das descendentes de muitas dessas muçulmanas a países do mercado comum europeu. Todavia, e mau grado a semelhança com as outras das lendas, os sentimentos que hoje lhes votam os garbosos cavaleiros cristãos são opostos aos que por elas sentiam os seus correligionários de antanho. Bom... Regressemos ao fio da narrativa, não vá ferir-me no fio do sabre de algum Dom Quixote prenhe de tradições cavalheirescas. 

Em Faro, no antigo casarão dos avós, com quintal poço e tudo, havia um corredor comprido e o quarto onde eu dormia situava-se ao lado da porta de entrada. Ora, numa bela madrugada de Verão, fui acordado por passos corredor acima: Shhhh... Shhhh... Shhhh... Um som alongado, cadenciado, como quem arrasta preguiçosamente pantufas gigantescas, lerdo como o andar daqueles mortos-vivos do cinema de hoje, com olhos sanguinolentos a cair, vestidos de farrapos de carnes verdes, putrefactas. Começavam ao longe e aumentavam de volume à medida que avançavam: Shhhh... Shhhh... Shhhh... Quando alcançaram à porta do quarto, enterrei a cabeça, apavorado, nos cobertores e tapei os ouvidos. Quando me descobri, as pantufas iam longe. Uf!

Doravante, sempre que tinha o azar de acordar de madrugada, ouvia-lhe, com o coração às marteladas, o arrastar dos passos aterradores. Seria eu vítima de uma moura encantada em pantufas que decidira amargar-me a existência cristã, deambulando corredor acima pelas madrugadas farenses? É o que vamos descobrir dentro de duas semanas, na segunda parte deste conto fantástico... Mas verídico!

(A continuar no próximo artigo...)
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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507


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