Wednesday 20 June 2018

O assédio do fantasma Africano

Onde se remata a história vivida de uma alma penada
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Shallow of people inside room with fireplace & armchair. Royalty free image. Source: pixabay.com
(Continuação do Assédio Do Fantasma Algarvio)

A temporada na casa do avô acabou-se e voltei para a cidadezinha bonitinha que me viu nascer. Havia calor sob as palmeiras, casuarinas plantadas nas areias das praias, uma baía de águas profundas, um farol que rodopiava, varrendo as trevas da noite, e gente às castas e às cores como acontecia nas colónias do império. Havia esplanadas onde se bebiam cafés e cervejas com tremoços gratuitos. Diziam os mais velhos que, no tempo deles, também não pagavam os camarões. Nessas esplanadas contavam-se frequentemente anedotas de macho, discorria-se sobre mulheres todos os dias e discutia-se futebol às segundas-feiras. Falava-se igualmente de livros, praia, caça e pesca, guerra e paz. Tudo isto a voz alta. De política era a voz baixa. E, é claro, havia histórias de almas penadas, bruxas, cazumbis e feiticeiros africanos cujos profissionais mais abalizados davam audiências numa aldeia chamada Dombe Grande. Não penses que só africanos de raiz visitavam bruxos, muito branco e mestiço de vários gradientes lá ia às consultas, encomendando serviços malignos ou benignos segundo as necessidades do momento.

Por associação lembrei-me de uma história que aconteceu na Catumbela, terra da minha mãe. Trata-se de uma antiga povoação que se encontrava no centro de extensões incríveis de cana sacarina onde, durante decénios, contratados miseravelmente pagos dobravam o espinhaço para a cortar. Nessa povoação foi cavado um cemitério que recebia (e recebe ainda, creio) os defuntos locais e os da cidadezinha bonitinha onde nasci. Estavam, portanto, reunidas todas as condições para a gestação de uma alma penada. E não é que apareceu? Uma dama vestida de branco que se materializava, à noite, na berma da estrada do cemitério, pedindo boleia aos machos incautos que por ali passavam ao volante de bólides. Os mesmos que, nas esplanadas, pontificavam sobre mulheres, futebol e fantasmas. Deparando-se com uma eventual presa perdida numa artéria de pouco tráfego, esmagavam os travões com os dois pés, faziam chiar os pneus, lambiam as beiçolas sensuais e embarcavam a senhora. Estás mesmo a ver que, para estrumar a sua reputação de conquistador ibérico, o nosso matador desatava logo a cantar-lhe a canção do bandido. A meio caminho, no entanto, a dama de branco, que não abrira a boca durante o trajecto, sumia abruptamente, provocando calafrios de terror na espinha dorsal do marialva.

Sumiço que, para mal dos meus pecados, não aconteceu com meu fantasma pessoal. Aquele que, de madrugada, na casa algarvia dos meus avós, me aterrorizava com o arrastar de pantufas: Shhh... Shhh... Shhh... Ora, como dizia, ao desembarcar de fresco naquela colónia de praias, baía e casuarinas, estava convencido que tinha deixado a minha alma penada na Europa, a assombrar algarvios. Na minha cidadezinha do Sul havia suficiente calor, humidade, mosquitos e paludismo para espantar fantasmas do Norte. Enganava-me redondamente! Para minha grande surpresa e pavor, a coisa manifestou-se numa bela madrugada da estação das chuvas. Não me lembro por que razão acordei, na altura gozava de um sono de pedra, e ainda não tinha a idade em que chegava às madrugadas por ter curtido a noite inteira. E sabes que aquilo não me largou mais? O assédio continuou, inexorável, impiedoso... Voltei a ouvir-lhe o arrastar, lerdo e terrível, das malditas pantufas. Não havendo corredor comprido, como no Algarve, a maldição passeava-se pela sala de visitas e varanda.

Cresci...

Cheguei àquela fase ingrata da pré-adolescência onde as borbulhas e o buço despontam, acordando-nos fantasmas na acepção francesa do termo (se não conheces a diferença entre fantôme e fantasme vai ler o artigo anterior). O assalto impiedoso das hormonas trouxe-me outras alterações caracteriais: tornei-me menos assustadiço e mais fanfarrão. Gabava-me, entre outras coisas, da minha lógica implacável que negava a existência de almas penadas. O que, evidentemente, entrava em conflito com a minha experiência pessoal na matéria. Ora aconteceu que numa bela madrugada em que a assombração se manifestou, e galvanizado pelas tais hormonas púberes, em vez de me enterrar nos lençóis, gritei um surdo: Basta! Num elã de bravura de que me gabaria toda a minha vida, penteei o buço, enchi o peito esquálido e preparei-me, de punhos feitos, escanzelados, para caçar a avantesma. Assim que o ruído dos passos atingiu o volume máximo, levantei-me num supetão e corri para a sala de visitas... Vazia! O som chegava-me agora da varanda, para onde me dirigi... Nicles! O covarde, intimidado pela minha intrepidez, tinha-se esgueirado para a rua. Precipitei-me para a varanda, debrucei-me no parapeito... E que vejo eu? Uma varredora!

Afastava-se, arrastando pela rua a longa cabeleira da imensa vassoura: Shhhh... Shhhh... Shhhh... Sentei-me num banco e ri-me sozinho, descontroladamente, mas contente: a lógica vencera a superstição! Pus-me a observar a mulher que continuava, ao longe, a ganhar a sua vida empurrando uma vassoura e fiz comparações. No Algarve, os seus homólogos eram homens brancos, ataviados com roupas remendadas e calçavam botas gastas. Naquela cidadezinha bonitinha eram mulheres negras, descalças, vestidas de panos, com lenços na cabeça e filhos às costas. Explica-me lá tu, pessoa instruída, por que diabos de razão o som da pobreza era o mesmo... E assustador!



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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507


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