Friday 6 October 2017

Do percurso das palavras

Onde se segue, lerdamente, a viagem das palavras
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Pawel Kuczynki - Viagem com tubarões
Regra geral não digo coisa que preste, mas houve dias, no passado, em que me senti erudito. Foram raros momentos, sou demasiado preguiçoso para me cultivar, prefiro instalar-me num sofá, metralhando o telecomando contra o ecrã de televisão. Desfolhar livros, pesquisar coisas pela Internet, assistir a aulas, a conferências, etc., não é para mim. Quando me levanto do sofá é para desentorpecer as pernas das várias opções que me proporciona a posição sentada ou, melhor, a horizontal... E sou tão apegado a estas posturas que, na minha juventude, pratiquei desportos que fazia deitado ou sentado: natação e remo. Só a caça submarina os suplantou, aquilo era boiar durante horas à superfície de um mar de silêncio. Para desentorpecer o corpo lá fazia um esforço e mergulhava de arpão apontado ao peixe que, invariavelmente, se me escapava. Estás mesmo a ver que dar provas de erudição estava fora do meu alcance, mas aconteceu. Duas vezes, com palavras cruzadas.

Não era eu quem as cruzava, era um outro, na mesa de um bar, depois de engolir a bica, língua entre os dentes e olhinhos concentrados. Eu refastelava-me na cadeira contígua, de pernas estendidas, diante de uma loiríssima caneca de cerveja com espuma e tudo. «Assassínio da esposa cometido pelo marido», leu alto o outro, coçando a cabeça com a borracha meditabunda do lápis. Veio-me à cabeça o étimo latino de esposa: uxor. Fora obrigado a aprendê-lo durante um curso de latim no liceu, do qual me desembaracei num exame onde passei resvés campo de Ourique. Arrisquei: «Uxoricídio». O outro encolheu os ombros, ignorando-me, e continuou, infatigavelmente, a encaixar vocábulos nos quadradinhos até que, incrédulo, viu a palavra «uxoricídio» emergir do cruzamento das letras. Mirei-o com altivez, limpando a espuma da cerveja que se agarrara à minha barba desleixada. Muitos anos mais tarde, em Montreal, uma colega de trabalho encarniçava-se contra o quadrilátero de palavras, no intervalo do almoço. «Animal que se alimenta de peixes», leu ela em voz alta, buscando ajuda. «Piscívoro», respondi-lhe, recordando-me do piscis latino: peixe. Ela mal levantou os olhos, os ombros sim, com desprezo como o outro na mesa do bar. E, tal como ele, arregalou os olhos incrédulos ao constatar que a palavra «piscívoro» se destacava, lindíssima, da matriz sobrecarregada. 

Estimulado por estes dois sucessos, inseri, entre as minhas parcas actividades culturais, a pesquisa do étimo de algumas palavras. Porque elas viajam e transformam-se, por vezes de maneira erudita entre os lábios educados de um douto, outras vezes degenerando-se entre grosserias de gente inculta como eu. As palavras mudam de significado e de nacionalidade, multiplicam-se, agrupam-se em famílias descendentes do mesmo antepassado mítico. Até emigram, imagina, muitas delas desembarcaram de veleiros, outras expatriaram-se em travessias perigosas, chegaram mesmo a ser expulsas. É possível seguir-lhes o percurso, estudar-lhes a evolução semântica, os traumas ou alegrias que transportam. 

E, para grande gáudio deste vosso amigo, o passatempo faz-se, como os desportos que ele praticou, sentado ou deitado. Com pouco trabalho. Trabalho! Eis outra palavra que me obcecou. Se foste criado nesta linda língua, que dizem de Camões, já ouviste a seguinte frase: «Quem não trabuca não manduca!» Quem não trabalha não come. É mentira, sabes disso, há muita gente que não trabalha, come bem e bebe do melhor, outras há que muito trabalham e pouco comem. Mas isso é outra história. Adiante. A palavra «trabalhar» já tinha sido alvo da minha obscura curiosidade, ela deriva de um horrível instrumento de tortura romano: tripaliare. Quanto ao «trabucar» descobri que vem de «trabuco», uma arma de fogo antiga, espécie de bacamarte que cuspia pedras em vez de chumbo. Engenho de guerra, portanto, coisa de manipulação laboriosa, dura, porque o trabuco tinha um recuo malandro, enegrecia os rostos com o fumo da pólvora, era pesado e perigoso: chegou a rebentar nas mãos de quem o disparava. Ao prolongar-se num verbo, trabuco associou-se a trabalho, incrustando-se naquela rude frase: «quem não trabuca, não manduca». Nestes dois cruéis exemplos, trabuco, associado a guerra e trabalho, tripaliare (étimo de «trabalhar») acasalado a tortura, escondem-se (ou revelam-se) os sentimentos que os humanos reservam ao trabalho. 

Já a coisa se passa de maneira diferente, oposta mesmo, com o sinónimo de comer, «manducar», que terá, como antepassado longínquo, um sensual romano: manducare. A palavra traz-nos um sorriso aos lábios, tu e eu sabemos como o verbo comer é primo ideológico do prazer, manducar impõe-se, então, como justa recompensa depois do trabalho árduo. Quando traduzida numa caipirinha em aperitivo, seguida de um bacalhau com natas à maneira, regado com um verde Alvarinho enterrado num balde de gelo, sericaia em sobremesa, bica e aguardente Adega Velha para rematar a pitança, o vocábulo desperta, num humano de traça normal, sentimentos de bem-estar e regozijo...

Mas agora pergunto eu: e se não houver trabucos para toda a gente, como é que se manduca? A pergunta é de actualidade. Li há dias que já não se produz comida em quantidade suficiente para alimentar o planeta! Fiquei preocupado, claro, porque, sendo fã de ficção científica, apercebi-me que somos todos tripulantes de uma nave espacial chamada Terra. E se aqueles que foram impedidos de trabucar (para manducarem) se amotinarem e invadirem esta nave, atacando à pedrada quem manduca pacificamente? Ou pior: e se, num acto de desespero, se puserem a atravessar mediterrâneos a bordo de xavecos escangalhados, ameaçando-nos a pureza ancestral dos impolutos costumes, avacalhando-nos os vocábulos nacionais? Oxalá que não! Infelizmente dizem as notícias que tais migrantes já existem e que, no percurso, a soldo de quem não os quer, há quadrilhas de rafeiros que os maltratam e escravizam. Como faziam os romanos aos servus

Falando de romanos. Sabes que a palavra escravo chegou ao latim numa fase já muito adiantada? E que ela emigrou para o português no século XV? Antes dizia-se servo ou cativo. O vocábulo «escravo» deriva dos eslavos, que teriam produzido muito servo (e serva) ao gosto dos meridionais, encantados com aqueles cabelos de palha e olhos claros. Podes crer, instruí-me sobre o assunto em obras de gente mui douta. Vai daí, leitura puxa leitura, fiquei a par de uma coisa horrorosa: esta nave espacial chamada Terra, viaja pelo universo com mais de quarenta milhões de escravos no bojo. Agorinha mesmo! No fundo, confesso-te, escrevi tudo isto, lerdamente sentado diante do computador, com o propósito de denunciar essa escravatura moderna. É para sossegar a minha consciência (que, com tanto amargo petisco para manducar, trabuca incessantemente), desassossegada depois de reler um poema do Bertold Brecht:

Primeiro levaram os negros /Mas não me importei com isso /Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários /Mas não me importei com isso /Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis /Mas não me importei com isso /Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados /Mas como tenho meu emprego /Também não me importei
Agora estão me levando /Mas já é tarde /Como eu não me importei com ninguém /Ninguém se importa comigo.


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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507



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