Tuesday 7 November 2017

Dobrando bocas em dobro

Onde se fala da utilidade de bocas a dobrar
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Futakuchi-onna
Se ignorares este artigo não perdes nada e isto não é boca para te ferrar. Foi inspirado (o artigo, não a boca) numa pergunta que corre pelo Facebook: «Porque temos duas orelhas, dois olhos e somente uma boca?». Li-a no mural do Carlos de Jesus, editorialista da LusoPresse. E não é que a pergunta se desdobrou numa série de outras que me ficaram a roer cá por dentro? Foram tantas que decidi publicar um sumário desse auto diálogo, adicionando outro artigo inútil à inutilidade dos anteriores. Mas olha, diverti-me comigo próprio, como se tivesse uma boca que falava e uma outra que da primeira se ria. Senti-me, como se dizia na minha juventude, um «bocas», quer dizer alguém que, como diz a deselegante expressão popular, «arrota postas de pescada». Afinal isto de bocas até tem muito que dela se diga. Que se diga aos ouvidos, claro, porquanto uma boca (ou um «bocas») não ouve, apenas se ouve. Mas houve (e há) muita gente que dela (boca) se serviu para bastos, e por vezes inconfessáveis, propósitos que, quando multiplicados por duas (bocas), dão resultados surpreendentes, preocupantes ou simplesmente divertidos. Partilho o meu brainstorming com quem teve a pachorra de me ler até aqui e até lá abaixo continuar a fazê-lo. 

A primeira pergunta que me coloquei foi óbvia: onde seria posta a segunda boca? É decisão delicada, basta olhar para a cabeça dos humanos, atravancada de órgãos e apêndices capilares. Hás-de concordar comigo: a cabeça é o território natural para se implantar uma segunda boca! Não faria sentido nenhum impingi-la ao peito ou às costas. Haveria que adaptar o vestuário, prever um orifício bucal libertando a boca peitoral ou dorsal. Com tanta boca sufocada neste mundo, por que razão impedir uma outra de se exprimir livremente, sem abafos? Está fora de questão colocá-las nos membros, posteriores ou anteriores. Ao bloquear um golpe com o antebraço, ou ao desferir um pontapé, lá se nos partiam os dentes e se nos fendiam os lábios. Além disso, no caso extremo de virarmos manetas ou pernetas, viraríamos zarolhos. E que dizer de quem fala pelos cotovelos? Seria igualmente irreflectido implantá-la numa das bundinhas, estaríamos condenados a sentarmo-nos sobre uma só (bundinha) para não esmagar a boca implantada na outra. No pescoço? Ideia a considerar! Uma boca na nuca, de muita serventia para quem diz uma coisa pela frente e outra pelas costas.

Depois de avaliar várias opções caiu-me o olho num design criativo: duas bocas frontais. Imagina: comissuras dos lábios roçando-se abaixo do filtro (aquela concavidade no centro geodésico da face), lábios alongando-se bochechas acima até aos lóbulos das orelhas. Bocas de orelha a orelha. Ideal para quem produz um discurso à esquerda e outro à direita. É a minha preferida! Já viste as possibilidades durante um banquete? Beber com uma e alambazar-me com a outra... Até me lambo os quatro beiços! Quem gosta de cavaquear à mesa ficaria servido, falando e comendo ao mesmo tempo, tornando obsoleto o adágio «boca cheia não conversa».

Para os desafortunados dos países pobres, assim como para os pobres dos países afortunados, constituiria má novidade. Já reclamam que têm varias bocas para alimentar, o dobro delas implicaria miséria a dobrar, lá reza o ditério: «a cada boca uma sopa». Opor-se-iam a uma boca suplementar os governos que mantêm a firmeza dos seus princípios através de ditaduras ou de «democracias musculadas», a braços com as sempiternas malvadas manifestações populares, excitadas por palavras de ordem esquerdistas.

Mas que grandes benefícios para o universo artístico! As gargantas educadas dos cem cantores do Coro Gulbenkian produziriam o efeito de duzentas vozes, enquanto coros modestos, como as tunas académicas, seriam enriquecidos. E que dizer da voz mágica de uma Celine Dion cantando em dueto singular; da musicalidade falada dos jograis; do alcance, em estereofonia, da voz da Mariza; da potência vocal dos Pavarottis, Domigos e Carreras? Um regozijo, nesses momentos quatro ouvidos seriam bemvindos. 

E os assediadores? Esses homens (porque são quase todos do sexo dito masculino) importantes, heterossexuais ou homossexuais, à cabeça de impérios económicos, que seguem e perseguem quem deles depende? Tomo como exemplo um caso fortemente mediatizado no Quebeque, onde um magnata do humor (entre outros) se divertia a forçar (sabes a quê) jovens aspirantes a uma carreira artística. Vítimas que se riam para o público com uma boca e choravam, sozinhas, com a segunda. Com uma só boca, o homem conseguiu calar dezenas de outras que, finalmente, acordaram de um longo silêncio e o denunciaram na praça pública. Imaginas que estragos fariam eles (assediadores) e que confusões levantariam elas (as assediadas), com duas bocas? É caso para dizer que com bocas a dobrar, se dobra um predador.

Devido à imperfeição dos humanos, casos haveria onde bocas da mesma face apresentariam dimensões diferentes. Como, por exemplo, em países bilingues, como este Canadá, onde a vantagem da dupla boca é manifesta: uma comunicando em francês, enquanto a outra, maior, se exprimiria em inglês. Para quem possui personalidades duplas, opostas, aquele desentendimento interior que os aflige subiria aos lábios, permitindo viva discussão entre um que larga balões de esperança e o outro que os rebenta... Para os professores, com uma boca ensinariam, com a outra disciplinariam... Preguiçosos assumidos, como eu, ficariam encantados com duas bocas para bocejar​... Irmãos gémeos teriam a atenção simultânea da mesma mãe... Os viciados em nicotina e canábis exultariam... Grande triunfo para políticos desonestos, vigaristas de vocação, pregadores oportunistas, vendedores da banha da cobra e outros que da palavra fazem carreira.

Acautelemo-nos, no entanto, com as ambições dos humanos: quando se lhes dá a mão, já querem o braço inteiro. Ou os dois. Porque, estimulados pela boca suplementar, haveria quem exigisse uma terceira. Todos nós já tropeçámos em indivíduos com cabeças a abarrotar de bocas, mas de ouvido minúsculo. Aqueles que parecem ter uma dificuldade congénita em pronunciar a seguinte frase: «Oh pá... Tens razão». 

Enfim, um mundo de possibilidades. 

E tu? Que pensas disto tudo? Que farias se tivesses duas bocas?

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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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