Onde
se viaja com esta língua que nos une e separa.
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Quando
eu era um pirralho, o dia 10 de Junho chamava-se Dia de
Camões, de Portugal e da Raça, chama-se hoje Dia de
Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Para mim, é o
dia desta língua que partilhamos, a mesma de quem um poeta se
reclamava cidadão: a minha pátria é a língua portuguesa. Será
a tua, provavelmente, porque se lês este artigo deves ter crescido na língua de Gil Vicente, Luís de Camões, padre António
Vieira, Mariana Alcoforado, Eça de Queirós, Fernando Pessoa
(o tal que é dela cidadão), Castro Alves, Machado de Assis, Cecília
Meireles, Osvaldo de Andrade, Vitorino Nemésio, António Jacinto,
Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alda Lara, José Craveirinha,
Amílcar Cabral, Florbela Espanca, Pedro Cardoso, José Saramago…
E de quantos outros!
Houve
alguém que disse (esqueci-me de quem, acho que foi um brasileiro)
que a língua portuguesa se divide em dois períodos: até Eça e
depois de Eça. Outros opõem-lhe o padre António Vieira, a língua
portuguesa seria coisa obscura até ser iluminada pelo autor
do Sermão de Santo António aos Peixes. Contudo, a
maioria de nós considera Luís de Camões como o expoente máximo
dessa flor do Lácio, inculta e bela nas palavras de
Olavo Bilac que, apesar do amor que votava à língua que ilustrou, a
feriu na sua susceptibilidade. Porque é bela sim, inculta não.
É
língua antiga que desabrochou num ramo comum, o galego-português,
nas montanhas do norte peninsular de onde caiu, de acha de armas em
punho, sobre sarracenos e castelhanos que expulsou. Cresceu entre
cristãos, judeus, burgueses, plebeus e reis, amadureceu, enobreceu-se,
popularizou-se e emancipou-se num rectângulo de terra talhado a fio
de espada. Espartilhada numa cota de malha assaz redutora para
lhe conter o ímpeto montanhês, arrancou aos pinhais veleiros, com
nomes de santos, que armou e lançou ao mar oceano. Neles embarcou,
levantou ferro, içou velas com a cruz templária e, de coração nas
mãos e rezas nos lábios, fez-se ao largo para enfrentar adamastores
que se escondiam nas brumas medonhas do fim do mundo.
O
sopro do lariço de Cascais empurrou-a para a linha do horizonte, as nortadas para
o sul e, manobrando entre os ventos camacheiros da Madeira e
mata-vacas dos Açores, foi-se instalando em ilhas luxuriantes,
desertas de pessoas. Lavrando o mar de vaga em vaga, bolinando ou
de vento em popa, chegou aos alísios que sopram aguaceiros sobre o
Equador, cintura dividindo o mundo em dois hemisférios. Ouçamos o
cidadão da língua portuguesa sintetizar esta aventura numa das mais
belas quadras da sua Mensagem:
«E
a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou,
correndo, até ao fim do mundo,
E
viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir,
redonda, do azul profundo.» (*)
Nessa
orla branca, que foi cartografando, a língua negociou aguadas e
géneros frescos, instalou feitorias, misturou-se aos idiomas locais,
mestiçou-se e deu à luz línguas francas, sementes de futuros
crioulos, deixando alguns padrões na esteira das naus e cruzes por todo o
lado. Permutaram-se vocábulos, e se alguns criaram raízes em terra
firme, outros embarcaram nos conveses atulhados de cordas e rudes pés
descalços. Nas torna-viagens, os marujos portugueses traziam a África
nos lábios, não fumavam a pipa ou a pipe como
os espanhóis, ingleses ou franceses, era no cachimbo que se viciavam
em nicotina, a confusão era um banzé, o charco de água uma
cacimba, a soneca um cochilo, as contas eram missangas, o mexerico um
zunzum, a desordem uma bagunça, a palhota uma cubata. E sob os
gritos de mestres que enviavam nuvens de trinqueiros aos velames,
espraiou-se pelo hemisfério sul, onde hoje é a língua mais falada,
chegou ao oriente, instalou-se entre indianos, japoneses, malaios,
chineses… E inventou a tal palavra que lhe é tão cara: saudade!
Em África e na América do Sul encontrou futuro: a uma
arrebatou milhões de escravos vendidos à outra a preço de ouro.
Embarcou-os nos fétidos porões dos mesmos navios, com nomes de
santos e cruzes templárias, arrancados aos pinhais do reino. Durante
séculos, entre as duas margens de dois continentes, ela baptizou,
acorrentou, chicoteou, comprou e vendeu milhões de seres humanos,
cujos rostos desesperadamente pasmados lhe trouxeram uma palavra
mais, a ela já tão rica de adjectivos: banzo! E esses mesmos
humanos, banzados, reproduziram-se na terra da sua clausura a quem os
mestres chamavam Brasil. Ali, milhares de escravos
alforriaram-se eles mesmos, servindo-se da língua do cativeiro para
levantarem quilombos de liberdade na República de Palmares. Tinham
compreendido uma terrível verdade hoje tão esquecida: a liberdade
conquista-se, o rei, o explorador e o governante nunca a oferecem. A
língua dividiu-se então em dois campos: o da emancipação, que
trazia urros de bravura e futuro; e o da escravidão que, ignorante
dos ventos da história e de olhos fitos no lucro imediato,
vociferava ódios à liberdade. E quando Zumbi dos Palmares, o imortal, foi
decapitado, e sua cabeça salgada e espetada no poste duma praça
pública, os executores acreditavam tê-lo silenciado e vencido o
mito da sua imortalidade. Contudo, não se decapita uma língua e
mesmo se Zumbi não era imortal, ainda não morreu. Há quem hoje se
esqueça dessas lições que viajam nas memórias desta língua tão
cheia de mundo.
Ela
foi testemunha da crueldade de graves autoridades eclesiásticas que, de mitras nas cabeças
e rezas em latim nos beiços diabólicos, pegaram fogo a milhares de
fogueiras onde ardiam, em vida, archotes humanos, num ritual de
purificação bárbaro. Tudo isso em nome duma religião e dum homem que nada
daquilo tinham pedido. Porque matar em nome de Deus, como
disse o único prémio Nobel de literatura desta língua que
mereceu vários: matar
em nome de Deus é fazer de Deus um assassino (**).
A
língua portuguesa serviu fielmente, durante séculos, um império
que se alastrou pelo mundo como uma vaga, construindo fortalezas e abrindo rotas, colonizando, dividindo e unindo. Contribuiu a pavimentar auto-estradas de água por onde
circularam as riquezas que os escravos produziam, inspirando outras,
semelhantes, invisíveis todavia mais eficazes, electrónicas, na
futura época da híper tecnologia. Como todo o império chega ao fim, e quem o contesta se serve da língua que o construiu para o derribar, a língua
gritou revoltas, guerrilhas e independências. Quando a vaga, enfim,
enrolou bandeiras e recolheu à concha onde nascera, deixara pelo
mundo pátrias novas, coloridas de amazônias, gorongozas, namibes,
pântanos de mangue, cafezais são-tomenses e ilhas de fogo. E em
cada uma das pátrias novas, a língua adaptou-se a climas variados e
gentes exóticas: no Brasil conta-se com quantos paus se faz uma
canoa; em Moçambique se amanhece a cantar ou chorar; em Angola se
consegue ou se desconsegue bué; na Guiné fuma-se uma ordem; em São
Tomé tudo vai leve-leve; em Cabo Verde tem morabeza. Nesses novos universos por ela criados, ela canta e dança com harmonias e requebros distintos,
desde os fados aos sambas, do kuduro às coladeiras, do gumbe à
marrabenta.
Ainda
hoje nos perguntamos por que razão a língua portuguesa produz quase
todos os sons do mundo. Li num magazine francófono que
o ão imita o estoirar das vagas na linha da
rebentação, e o ch, sh, (ce son
chuintant) simula o chiar da espuma espraiando-se areais acima.
Sendo assim, quando falamos português é com o mar nos lábios que o fazemos.
A
língua portuguesa criou bolsas de emigrantes em vários países do
mundo onde luta para se manter viva. E é por isso que a escrevemos
aqui, neste país de frios e gelos, nas vésperas deste curto Verão que se
anuncia. Porque ela não é uma pátria, como queria o poeta, ela são
vastos universos pertencentes a muitas pátrias que partilham um
paradoxo difícil de resolver: por que razão uma língua tão
antiga, tão espalhada e tão rica, é falada por tanta gente tão
pobre?
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(*)
PESSOA, Fernando, Mensagem, 1934.
(**)
SARAMAGO, José, Outros Cadernos de Saramago, artigo Deus
como problema, publicado pela Fundação José Saramago a 16 de
Outubro de 2008.
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© Carlos
Taveira
LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
Mateus da Costa e os trilhos de Megumagee, Romance, Português,
Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452
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Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5
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Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.
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Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5
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Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5
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Create Space, 2016, 186p, ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507
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