Thursday 20 September 2018

Isto havia de ser no meu tempo...

Onde se questionam os bons velhos tempos...
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«No meu tempo é que era...»; «Vocês hoje são uns mimados...»; «Isto havia de ser no meu tempo...» 

Era muito jovem quando ouvi estas pérolas de sabedoria dos mais velhos. Venceram as brumas da minha fatigada memória ao deparar-me com uma dessas preciosidades postadas no tapete rolante das redes sociais. O artigo enumerava um punhado de actividades que fizeram a felicidade da nossa juventude («Se és deste tempo, partilha...»): Brincávamos com fisgas; ficávamos lá fora sem medo de raptos; apanhávamos umas chineladas no rabiosque que levantávamos para ceder lugares às meninas, senhoras e mais velhos; esfregavam-nos jindungo (piri-piri) na língua quando dizíamos asneiras; havia respeitinho aos professores armados com palmatórias de cinco olhos e ponteiros como matracas... 

Fui logo invadido por uma lufada de saudades das chineladas, reguadas, cacetadas e picantes na língua... E por uma compaixão sem limites em relação às gerações seguintes que não tiveram a oportunidade de gozar de tanta generosidade. Todo contente, peguei no telefone para partilhar este achado com o meu amigo Rebenta-Balões (que recusa as redes sociais), um tipo azedo mas muito informado que tem a mania de botar abaixo as certezas alheias. Ouviu-me com um silêncio inabitual, atípico e, contrariamente a um hábito arreigado, não me interrompeu a leitura. Devia ter logo desconfiado. Ademais respondeu-me com a voz melodiosa da raposa de Lafontaine, aquela que bajulava o corvo: 

— Que observações tão profundas. E no Facebook hã? Olha a coincidência, ainda ontem me deliciei com um artigo que até parece a continuação desse post. Espera aí, vou-te ler alguns excertos a propósito, escritos por homens famosos... Para enriqueceres as redes sociais. Ouve com atenção. Um: É a decadência, as crianças são desobedientes, a língua deteriora-se, os costumes degradam-se. Dois. Não têm consideração nem respeito pelos pais [...] Não tenho a mínima esperança nos jovens de hoje [...] Esta juventude está impregnada de presunção [...] Quando era jovem, ensinavam-nos as boas maneiras e o devido respeito aos pais. Três: Hoje em dia, os jovens só gostam de luxo, desprezam a autoridade [...] Não se levantam quando um adulto entra no lugar onde estão [...] Fazem troça da autoridade. Quatro: A juventude de hoje está corrupta até às entranhas, é má, descrente e preguiçosa. Nunca serão como a juventude do passado.

Exultei durante alguns segundos, manifestando o meu contentamento, era a primeira vez que o Rebenta-Balões estava de acordo comigo em alguma coisa. Alegria de curta duração, a voz de raposa bajuladora cambiou-se em riso de hiena trocista... Tinha caído numa esparrela! 

— Vamos lá então desvendar os autores destes textos. O primeiro é de Políbio, um historiador grego que viveu lá pelos anos 200-120 a.C. O segundo vem de Hesíodo, é um excerto de Os trabalhos e os dias, escrito no século 18 a.D. O terceiro devemo-lo a Sócrates que se queixava da juventude dos anos 470-399 a.C. O quarto é apócrifo, mas foi gravado numa tábua há cerca de 3000 anos, na Babilónia.

Empalideci e engoli algumas palavras feias que me saltaram à mente. E não se ficou por ali... Para me rebaixar ainda mais, o animal desempoeirou uma recordação muito pessoal que lhe tinha contado há alguns anos, pedindo-lhe segredo absoluto. Não lhe bastava ter-me lapidado com aqueles calhaus arrancados ao chão da história! Dado que és curioso, confio-ta, rogando-te que não a passes aos amigos nem a postes nas redes sociais: tenho uma reputação de pessoa bem-educada a defender.

Aconteceu num belo dia de Inverno, na cosmopolita cidade Montreal por volta de 1990. Ia de metro a caminho do trabalho e, como me tinha esquecido do livro, pus-me a contemplar o mundo à minha volta. Observação que degenerou em crítica silenciosa, ao constatar a falta de civismo de indivíduos que não cediam passagem. E de outros que, sentados, não davam o lugar a pessoas idosas nem a senhoras grávidas... Via-se logo que nunca tinham levado umas chineladas naqueles rabiosques preguiçosos quando eram meninos. A minha indignação foi aumentando à medida que o metro avançava pelos subterrâneos da cidade até chegar ao destino. 

Era este exacto momento que o Rebenta-Balões, de risota armadilhada na garganta, me recordava, para se deliciar com o meu embaraço:
— E que fizeste quando chegaste à tua estação... Conta... Anda lá!
— Levantei-me do meu assento e saí!

Desliguei sem dizer água vai!


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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507


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