Tuesday 1 March 2016

Deixem as cigarras cantar

Onde se fala duma cidadezinha e do canto das cigarras.
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Num dia que já lá vai, hoje coberto pelas areias dos decénios, um carril de caminho-de-ferro fecundou uma pedra de porto de mar... E assim foi gerada a cidadezinha bonitinha onde muitos de nós nasceu e, ou, cresceu!

Há a orla duma praia sem turistas que invariavelmente começa aos nossos pés, se vai desdobrando rentinha às ondas durante quilómetros e morre na foz dum rio onde flutuam olhinhos de crocodilos medonhos. Há uma baía muito funda, muito meiga, muito azul, sobre ela deslizam nadadores, velas, remos e os cascos de ferro de transatlânticos vindos de outros mundos. Há um oceano que se chama Atlântico Sul, sobre o qual pescadores atiram redes que arrastam depois para terra, carregadinhas de peixes ou desilusões. Há uma longa restinga por onde se espreguiçam esporões pedregosos que nascem das cazuarinas e adormecem apontando para um sol poente, que irradia cores berrantes pelos azuis dos céus. E há coisas pouco frequentes, como aquele nevoeiro cerrado, ocultando as águas para lá da rebentação, que engoliu um avião com dois motores a hélice, matando quase todos os passageiros que nele viajavam. 

Esses infelizes afogaram-se nesse mesmo mar que me deixou a mais antiga das minhas recordações, tinha eu quatro ou cinco anos. É um fenómeno a que os sábios deram nomes de poesia: ardentia ou mar de ardora. Em adulto, durante as deambulações nocturnas com amigos, tivemos a sorte de voltar a encontrá-lo. Maravilhávamo-nos então com a espuma das vagas ardendo numa fluorescência que rolava contígua à costa, como se um imenso feiticeiro tivesse pegado fogo às águas. Mergulhávamos nelas! Os nossos corpos, e os peixes que espantávamos, refulgiam, das areias surdiam fagulhas sob os passos e carícias dos dedos. 

Quando o céu se enfurecia, estrondeavam trovões aterradores e relâmpagos como flashes astronómicos; quando o oceano tempestuava, eram calemas furiosas causando estragos, escalando as praias, cobrindo de areia os asfaltos. Havia cacimbos silenciosos e estrépidos de aguaceiros; latir da cãzoada e guinchos dementes da gatarrada em cio; salinas como espelhos aos quadradinhos e uivos de locomotivas fendendo a noite; vozes graves, pausadas, profundas, das chaminés dos navios e o silvo agudo, irritante, da sirene do porto; um carnaval com corso, batuque, ritmos brasileiros e a luz dum farol a varrer a noite sobre as nossas cabeças... E havia os gritos feios das gaivotas! 

O asfalto amolecia-se sob uma soalheira que também escaldava os areais. Neles grelhei as plantas dos pés quando acompanhei uma garota que me tirava o sono, da paragem do autocarro até às cazuarinas. Ia descalço para que ela pasmasse diante daquele meu desprezo pelo sofrimento físico. Já agora aproveito para te dar um conselho: nunca faças tamanha besteira. Arrepender-te-ás amargamente a cada passo vencido. Sobretudo porque foi tortura inglória, ela deu-me com os pés, como, aliás, já tinham feito algumas, gesto repetido por muitas outras durante uma longa carreira de Casanova fracassado.

E os mangais… Lembras-te deles? Disfarçavam o pivete dos dias cáusticos embelezando-se com o tapete rosado dos flamingos. Um dia empunhei binóculos, fui contá-los, desisti quando cheguei aos dois mil. Desses mesmos mangais levantavam-se bandos de pernaltas, é verdade, mas também nuvens de mosquitos tinhosos de nome paradoxalmente bonito, anofeles, que nos picavam e nos traziam febres palúdicas e sezões de frio em plena canícula da estação das chuvas.

Não havia muita gente dentro da cidadezinha – uns oitenta mil? –, hoje, porém, há muito mais. Naqueles tempos, como agora, as gentes da cidadezinha bonita onde nasci estratificavam-se em várias camadas, a partir do sítio onde as cubatas começavam até à praia onde as casas acabavam. Gente de todas as bolsas, outrora com tendência a escurecerem-se e empobrecerem-se à medida que o asfalto se transformava em terra batida. E havia aquela frase junto à porta do elevador dum grande prédio: «proibida a entrada a africanos». E havia prisões e violências, como em todas as cidades, bonitas ou feias, deste mundo. Era assim, lembras-te? Pequena, sim, mas com tanta coisa linda e feia, e com tanto contraste lá dentro! 

E sabes o que me ficou daquilo tudo? 

O canto das cigarras... 

Aconteceu há muitos anos atrás  tantos que tenho medo de os contar para não me sentir velho  uma coisa absolutamente normal: a manivela da História pôs-se a rodar. E ao rodar provocou espantos, terrores, movimentos de massas e explosões. Ainda me lembro da primeira guirlanda de tiros mas não das detonações, na memória ficou-me apenas a revoada de flamingos espavoridos que tomaram o céu de assalto. Não sei quantos eram, mas sei que eram mais de dois mil. E nesse mesmo momento tive a impressão que as cigarras tinham emudecido, que se recusavam a cantar. Como se os disparos lhes tivessem atingido o canto e quebrado uma das tramas sonoras da cidadezinha.

A História, teimosa, surda, continuou a rodar implacavelmente, trouxe conflitos, dividiu os cidadãos e enviou homens em fúria, com armas e camuflados, que cercaram a cidadezinha aplicando-se a sufocá-la com garras de aço e ódio. Para deles fugir, deixei a cidade como fizeram os flamingos, pelos céus, sobrevoando um tapete verde de cana-de-açúcar que a guerra consumiu. 

E apesar de tanta beleza e tropicalidade vou-te confessar uma coisa – a propósito da cidadezinha  consciente que corro o risco de te desiludir: até hoje nunca dela senti saudades. Durante muitos anos não compreendi porque diabos as saudades não me atezanavam e quase sofri com isso. Um dia, uma colega canadiana à porta do trabalho, ao ver-me chegar, teve o seguinte comentário: «Tu marches comme un Noir». Eu não sabia o que era andar como um negro, mas a coisa ficou-me a rodar na cabeça até um dia de Verão como lá na banda: fazia um calor tórrido e o céu ameaçava abrir as comportas. Compreendi então. É que me desloco com o passo do tropical que se move lentamente porque o sol dardeja e a velocidade faz suar. Como na cidadezinha onde nasci. Dela tanto me impregnei que ando como se lá andasse, como se nunca a tivesse deixado, como se ainda me escorresse água salgada do nariz e como se, quando remo no ginásio, fosse sobre a baía funda que o fizesse. 

Os anos continuaram a rodar, sem saudades, a manivela da História também. Num dia frio dum Inverno deste país de gelos, recebi uma oferta rara, embrulhada em papel de jornal: uma boa notícia. A guerra lá da banda tinha acabado! E daquela cidadezinha, de tão longe que custa a crer, chegou-me um som antigo que se tinha calado no meu espírito.

O canto das cigarras!

É imaginação tua, dirás, e provavelmente tens razão. É para escreveres frases de blogue, rirás, e se calhar é verdade. É para te armares em forte com essas tuas faltas de saudades, resmungarás, e às tantas é isso mesmo...  Mas aquela cidadezinha bonitinha com gatos em cio, cães vadios, poentes marinhos, gaivotas, flamingos, mangais, salinas, calemas, trovoadas, ardentias, areias, cazuarinas, esporões, baía, carnaval, batuque... E com gente aos estratos lá dentro... Aquela cidadezinha, que nasceu da paixão entre um carril e uma pedra, é mágica e só sobrevive enquanto as cigarras cantam...

Que nunca mais se calem!


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© Carlos Taveira



LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE



Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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