Tuesday 27 October 2015

Eleições entre índios e cowboys

Onde se fala de cowboys e da vingança do chinês dos índios
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Que alívio... Acabaram-se as eleições dos dois lados do Atlântico! Posso ler descansado sem aquela cacofonia de fundo. Não é que lhes preste atenção, mas é impossível ignorá-los durante a corrida ao poleiro. Estão em todo o lado. Deixam-me brochuras na caixa do correio, mensagens no respondedor automático, batem às portas, enviam mails, aparecem em tudo quanto é rádio, televisão, Facebook, Twitter e afins. Fiquei paranoico! Antes de me deitar espreitava para baixo da cama, não fosse um voluntário zeloso ter lá acampado com um saco de sorrisos. No fim da campanha devem ter cãibras nas bochechas de tanto arrepanharem os músculos faciais. Mas com o tempo aprendi e agora tenho resposta pronta. Como quando me fizeram uma pega de caras. Bateram-me à porta, pensei que era a entrega de cerveja fresquinha, hélas, dou de caras com duas fileiras de dentes brilhantes. Eram eles, credo! Retribuí sorrisos e apertos de mão e meti-os em KO técnico com a seguinte réplica:
–  Eu cá sou casmurro e voto sempre no mesmo. Se for em si, já levou o meu voto, se for num outro, olhe, infelizmente não me consegue converter. 
Como eram do partido western baixei a voz em tom de confidência, e disse-lhes que a vizinha andava indecisa. Para me vingar! Ela tinha telefonado cá para casa, autoritária («baixem a música»), quando eu me deliciava com a Ionisation de Edgar Varèse, que só faz sentido se degustada com muitos decibéis. E eles lá foram, atrás dos sorrisos, bater-lhe à porta. Ainda por cima, a dita vizinha detesta que lhe batam à porta e odeia o partido western. Bem feita!

Os candidatos não me dizem nada, nem os conhecia se não espetassem cartazes por esses relvados fora com a chipala cheia de dentes montados em cremalheira. Aqui, neste país de gelos e degelos, acho-os giros quando fazem campanha no Inverno. É raro mas acontece. É divertido ver os voluntários e os candidatos tiritando de frio, amortalhados em casacos, gorros, luvas, botas enterradas na neve alta, golfadas de vapor de água como fumos pela boca fora. E nós ali no quentinho, a abrir-lhes a porta com preguiça, chávena de café fumegante nas unhas, sem os convidar a entrar («mas que frio, não acham?») É então altura de demorá-los, de bombardeá-los com perguntas. Esta técnica é especialmente interessante contra os candidatos do partido dos cowboys. Como quem não tem cão, caça com pulhice, foi a única maneira que encontrei para lhes fazer sentir um pouco do frio que se preparavam para distribuir aos pobres. Praga que existe mesmo neste país rico, vá lá saber-se porquê. O outro prazer que me dão as eleições de Inverno é quando os cartazes dão as fuças a um nevão que lhes cobre sorrisos e logos partidários. Adios poluição visual.

Vem tudo isto para te contar o meu encontro com um candidato que me fez uma pega de caras. Era Verão, estava eu sentado num banco da rua tomando coragem para ir trabalhar, quando um homem se materializou diante de mim na companhia duma jovem loira muito bem-feita, espigada, airosa, ar inteligente. Como eram dois, bem vestidos e com brochuras na mão, disse para comigo, «Mas que coisa, Testemunhas de Jeová à Quarta-feira... Mudaram de tática! » 

Enganava-me redondamente! 

O homem, africano da África, alto, tipo nilota ou sudanês, apertou-me a mão e sorriu-me como se tivesse encontrado a sua estrela de cinema preferida. Aproveitava para me oferecer uma das brochuras que, como era gratuita, aceitei. Damn! Era um panfleto eleitoral com o seu próprio retrato (sorridente) encimado pelo logo do partido dos cowboys. Aquele que é chefiado pelo penteadinho que destruiu a reputação internacional deste Canadá, outrora tão bem visto. Entre outras façanhas, o dito cujo rasgou o acordo de Quioto, reduziu o orçamento do meio-ambiente, opôs-se ao reconhecimento internacional dos índios (que o odeiam com um ódio antigo, de estimação) como nações, cortou na ajuda ao terceiro mundo, acabou com o controle das armas de fogo...

Se aquele tipo que me encurralou no banco fosse loiro, olhos azuis, stetson na mona, pescoço vermelhusco, colts à cintura, cavalo pela arreata, até o ignorava. Mas, que diabos, era um africano de África! Estava francamente no partido errado segundo a minha modesta opinião. Seria mais  natural que fosse do partido por quem voto. Porque o cowboy penteadinho é tão bera, tão impopular por esse mundo fora, que os africanos votaram contra a presença do Canadá no conselho de segurança da ONU. Lembram-se? Foi Portugal quem ganhou! Coisa nunca dantes vista: esse charmoso, mas pouco influente, país à beira mar plantado eliminou este imenso Canadá que vai dum oceano ao outro.

Olhei para o candidato, indignado, e nem sequer o pus em KO técnico com aquela réplica demolidora. Devolvi-lhe a folha de couve que tinha na mão, pegando-lhe com as pontas dos dedos, informando-o com educação que não votava em cowboys que odeiam índios. Foi muito polido, disse OK e afastou-se com a voluntária na esteira. Que era jovenzinha, loirita, bem-feitinha e espigadota, sim senhor, mas que de inteligente só tinha o ar, porque se o fosse trabalhava para o partido que leva o meu voto.

Desabafei com aquele meu amigo corrosivo, de quem às vezes aqui falo, mas o estupor aproveitou para mangar comigo, como de hábito:
–  Eh pá, viraste racista? Atão um africano da África não tem direito de desprezar índios? É por isso que se combate o racismo. Não é só para acabar com a discriminação, é também para ser possível detestar os idiotas de todas as raças sem que nos chamem racistas. Mas estou a ver que continuas ingénuo e idealista... Olha, por falar de pureza... Sabes a merda que descobri  a propósito desse tipo que achas muito íntegro, o...
Cortei-lhe logo o pio, com ele uma conversa que começa mal não acaba bem. Mas olha que não deixava de ter razão. Afinal temos todos o direito democrático de votarmos uns contra os outros independentemente da raça, religião ou sexo de cada um.

E já que falei em índios...

Eles, que votam muito pouco ou quase nada, desiludidos como estão com os governos sucessivos que não lhes resolvem os problemas, e sobretudo com o governo do penteadinho lá do faroeste profundo... Votaram! Não em massa, claro, mas apresentaram-se às urnas em número nunca visto. Houve circunscrições em que se esgotaram os boletins dado que o voto indígena teve um aumento de 270%.  O que não os desmobilizou, sentaram-se e esperaram pacificamente que os aprovisionassem com outros cunhetes de munições. Neste caso a palavra urna é apropriada: eles traziam uma vontade exprimida de enterrar os candidatos western, contra quem mantêm aceso um ódio de estimação.

E sabes por quem eles votaram?

Por ninguém!

Votaram contra! Como consequência colateral, ajudaram a entronizar um candidato que não os chateia tanto! Votaram contra o penteadinho porque entre eles o ódio é recíproco, histórico e de estimação. Deves estar lembrado daqueles livros aos quadradinhos quando cowboys bonitos, bem feitos, cavaleiros exímios, leais, hábeis no gatilho e no loyal punch, depois de formarem um círculo com os carros de bois a abarrotar de colonos, liquidavam bandos de índios emplumados, pintados como demónios, uivando como lobos, horripilantes e cruéis, que assustavam frágeis donzelas loiritas, bem-feitinhas, espigadotas e criancinhas tão fofinhas. Desta vez foi diferente: os índios ganharam e os cowboys perderam.

Bem feito Stephen!

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© Carlos Taveira


LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE


Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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