Monday 24 August 2015

Conforto: classe, substantivo ou coisa complicada?

Onde se fala das várias definições de (in)conforto
______________________________________________________________

Conforto (derivação regressiva de confortar) é um substantivo masculino que significa:  nova força,  novo vigor, bem-estar, consolação (figurado), comodidade, conchego. É o dicionário Priberam da Língua Portuguesa em linha que o diz, e para não pensarem que estou a dizer baboseiras aqui vai o apontador: Conforto.

Sinto-me honrado que o substantivo em questão seja do meu género (masculino), eu que sempre apreciei o conforto, vocábulo muito amigo do ócio e da preguiça. Conforto será, portanto, coisa macha. Estranho e ilógico, não é? Quando se diz «macha», associa-se-lhe o vocábulo feminino «coisa»: coisa macha, que é coisa de homens. E depois admirem-se de haver tanta gente confusa com a sua própria (e a dos outros) orientação sexual. Isto não quer dizer, de maneira nenhuma, que só quem é de sexo masculino tem tendência para o conforto. É apenas uma tendência. Tendência contrariada por algumas senhoras que muito prezam o seu bem-estar, a sua comodidade, o seu lazer e até têm criados para isso. E como a excepção confirma a regra, há homens (poucos) que pouco ligam ao conforto, por exemplo um tipo que conheço, que passa a vida no ginásio e na piscina e nos halteres e sítios afins, que até engatou uma mulher mais nova que ele uns quinze anos. Conforto, segundo a minha modesta opinião, deveria ser substantivo biforme, aí está uma injustiça que o novo acordo ortográfico não corrigiu. Mas se calhar, ignorante como sou, estou para aqui a dizer um chorrilho de asneiras e o acordo ortográfico não se ocupa do significado de fatos e cagados.

Adiante, antes que continue a dizer besteiras...

Como dizia mais acima, sempre tive uma clara ideia do que é o conforto. Foi por isso que, quando decidi apanhar um combóio para uma mui bonita e antiquíssima cidade situada no norte do país (onde há um vinho muito famoso que não menciono porque não me pagam para fazer publicidade) fiquei excitado quando descobri que havia uma classe Conforto! Marquei logo dois lugares porque a minha companheira, aquela que (ainda) não me deu com os pés, viajava comigo. Ou eu com ela. Imaginei-me logo de pernas displicentemente estendidas, limonada sobre a mesinha levantada entre nós os dois, horrorizando-me com um excelente livro sobre a escravatura (« Escravos e Traficantes no Império Português» de Arlindo Manuel Caldeira) enquanto a paisagem ia desfilando lá fora. E, claro, bem servido por um pessoal atento à comodidade dos passageiros, prontos a resolver a mínima contrariedade, como, por exemplo, a falta de papel higiénico no WC.

Já na estação, malas apressadas rolando atrás das sandálias, perguntámos a um funcionário de uniforme cinzento qual era a linha do combóio para o norte. Ele enviou-nos para a 13. Era a 12, via-se logo que o homem não era supersticioso, tinha errado por um algarismo, já se viu pior, as previsões dos ministros da economia, por exemplo. Entrámos todos contentes, procurámos os lugares, encontrámo-los e... Surpresa!

Cagaçal!!!

Sobre o tampo da mesinha, copo de plástico entornado, papéis sujos, um dos assentos molhado com um líquido duvidoso. Desilusão, claro, mas como somos turistas optimistas pensámos que, como aquilo era Classe Conforto, o problema seria resolvido com presteza, sorrisos, desculpas e eficácia. Bem-educado como sou, cedi o assento limpo à minha companheira e fui à procura do pessoal de serviço às mesas. Encontrei-os, era fácil, envergavam uniforme azul, foram muito simpáticos, insurgiram-se contra os vândalos que deixavam uma mesa num tal estado lastimável, era inadmissível... Mas, pesarosos, informaram-me que não era da responsabilidade deles limpar o tal cagaçal. Ingénuo, e desconhecedor das responsabilidades distribuídas pelos funcionários do tal Caminho-de-ferro (do qual não digo o nome para que não me acusem de caluniador, mas que não era o de Benguela não senhor), ainda perguntei:
– Mas não são vocês que distribuem bebidas e comidas?
Ao que me foi respondido:
– Sim. Mas não é nossa responsabilidade limpar o vandalismo dos vândalos.
– Atão de quem é?
Não sabiam muito bem, mas sugeriram-me expôr o espinhoso problema ao revisor.
– Tem uniforme cinzento - E disseram-no de sorriso maroto como se antecipassem uma situação cómica.

Lembrando-me do outro funcionário de uniforme cinzento, na estação, que por pouco nos tinha enviado para outra cidade, fiquei desconfiado. Todavia lá fui à aventura e encontrei o revisor que me ouviu com atenção religiosa. No fim abanou a cabeça, desconsolado, compungido... Mas, enfim, a coisa não era da sua responsabilidade e até precisou:
– O meu dever é de ter o comboio limpo quando inicia a viagem lá no Sul. O que fazem os passageiros irresponsáveis, até ao destino, no Norte, não é de minha responsabilidade...
Fiz-lhe a pergunta óbvia:
– Atão de quem é a responsabilidade? É que eu cumpri o meu dever de passageiro: paguei os bilhetes.
Recebi uma resposta que ainda hoje me maravilha: a responsabilidade era de quem tinha feito o cagaçal! Sempre polido, mas já agastado, perguntei-lhe se devia viajar num assento molhado com copos entornados sobre o tampo. A resposta foi tão deliciosa como as precedentes:
– Podem desembarcar e tomar o comboio da noite.
Por fim lá negociou com outro passageiro que, amável, veio sentar-se na cadeira que nos pertencia. Ficámos em dois lugares contíguos, mas sem mesa no meio. Só uma semana depois soube que havia um livro de reclamações, que não me foi proposto pelo simpático revisor cuja responsabilidade não era a de manter confortável a carruagem Conforto.

A leitura do excelente livro sobre a escravatura, e da maneira como os escravos eram transportados, relativizou o meu desconforto. Mas como tenho a mania de pensar no significado das palavras, não pude deixar de meditar nestas duas: Responsabilidade e Conforto. Será que o seu significado varia de país para país? Às tantas! Já me aconteceram percalços noutros meios de transporte, por exemplo num país onde cai muita neve, que tem muito gelo e onde faz um frio de morrer e do qual não digo o nome para não pensarem que estou com favoritismos. Mas nesse país, houve funcionários responsáveis que, preocupados com o meu conforto, resolveram a coisa duma maneira que me parece lógica: Limparam!

Acho que o novo acordo ortográfico perdeu uma boa ocasião para mudar o significado destas duas palavras: Responsabilidade e Conforto... Seja como for, não encontrei nenhuma substância na classe Conforto do tal Caminho-de-ferro (que não é o de Benguela, o CFB, não senhor) dum país do qual não digo o nome para não me acusarem de me armar em turista difícil, fazendo confusão. Porque era simplesmente isso que fazíamos: turismo em classe Conforto. E se durante a próxima revisão ortográfica e lexical, mudássemos o significado de outros vocábulos, como, por exemplo: brio, profissionalismo, obrigação, consciência, dever... etc., etc., etc...

A não ser que seja culpa da Angela Merkel, da Tróica e do governo. Nesse caso...

._█_.
_(ツ)_
▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬
© Carlos Taveira



LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE



Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬