Tuesday 1 September 2015

Escrita automática, channeling e espírtios perversos

Onde se fala de espíritos rasteiros, de plágio falhado e de channeling
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Um dia destes ouvi no autocarro duas jovens senhoras que falavam animadamente de channeling, contactos com o outro mundo, espíritos de alto e baixo astral. O tipo de conversa que geralmente me deixa indiferente, mas que naquele dia despertou a minha curiosidade. A expressão «escrita automática» espetou-me a orelha perdigueira, arrancando-me à leitura dum excelente livro de bolso (Reclaiming Art in the Age of Artifice: A Treatise, Critique, and Call to Action, J. F. Martel). O autor reposiciona a arte nesta época de artifícios, explicando-nos porque é que aquela publicidade muita bem-feita, com uma mulher de sonho que até parece ter sido criada por um dos velhos mestres holandeses, não tem nada a ver com a Arte.

Estava eu a reler a passagem onde o autor fala dos três condimentos da verdadeira obra de arte segundo Joyce, integritas, consonnantia, claritas (há dias em que me sinto tão erudito), quando fui despertado pela tal frase no autocarro, «escrita automática», que veio à baila várias vezes entre as duas amigas. O que ouvi interessou-me e busquei informação no DuckDuckGo. É como o Google mas não guarda informações pessoais nem traço das tuas pesquisas, nem te aparece pornografia indevida quando buscas coisas decentes. Dei-me conta que a tal escrita automática não me era completamente desconhecida. Mas agora, que editores corajosos me fizeram o favor de publicar alguns dos meus romances, a coisa revestia um aspecto diferente. O que te vou confiar fica só entre nós, porque é feio, arrisco-me a que mudes a tua opinião sobre a minha honestidade. Mas abro-te o coração,  que é uma maneira de falar, se abrisse o coração é claro que morria. Aliás, se invertermos esse coração que desenhamos por todo o lado, dá uma bundinha perfeita. Há quem defenda que é daí mesmo que vem o símbolo universal do amor... Mas acho que me estou a desviar do assunto. Dizia eu que a escrita automática me tinha dado uma ideia genial: fazer uma impostura indetectável.

Explico!

A ideia que me veio à cabeça foi a seguinte: conectar-me ao espírito dum grande escritor falecido, como por exemplo o Eça de Queirós, e convencê-lo a transferir-me um potencial best-seller utilizando a escrita automática! É verdade que moralmente a coisa é duvidosa, vem-nos a palavra plágio às mentes. Mas como os espíritos não têm assento nos tribunais... Enfim, poupo-te a descrição das pesquisas. O assunto em questão é coisa de médiuns e de espiritistas. O médium coloca algumas folhas de papel e qualquer coisa que escreva à mão de semear, prepara-se mentalmente, fecha os olhos e invoca o espírito. A um dado momento a mão move-se e escreve coisas. Como aquele telex antigo, lembras-te? De repente acordava e desatava a tiquetaquear, transmitindo mensagens ditadas do outro lado do fio. Os especialistas em escrita automática, segundo as minhas pesquisas, utilizam técnicas menos sofisticadas e insistem no papel e lápis, esferográfica ou caneta. O que me trouxe o primeiro embuste: a minha caligrafia é tão má que nem consigo ler o que escrevo. Resolvi, portanto, adaptar a técnica aos tempos modernos e utilizar o computador. Regulei a altura do assento de maneira a repousar os antebraços nos braços da cadeira, deixando os dedos mortos caídos sobre o teclado. Depois foi só esvaziar a mente e invocar o Eça. Para evitar que um espírito rafeiro se intrometesse, fumiguei previamente a casa com ervas aromáticas, método que os índios cá da banda utilizam há milhares de anos. Mais abaixo podes ler o resultado da experiência. Foi ligeiramente retocado, não é o original tal como saiu automaticamente. A pontuação estava reduzida ao mínimo e até pensei que o espírito do Saramago se tinha intrometido. Mas a letra f transformada em ph, e outros detalhes do género, indicavam que o texto vinha duma época mais antiga. Os comentários entre parênteses foram adicionados.

Atenção, aí vai!

Oooooommmmmmmmm.... Oooooommmmmmmmm.... Oooooommmmmmmmm....

Lua, luz, carros que passam, candeeiro fechado... Como se os candeeiros se fechassem... Irra! Não, não posso racionalizar tenho de deixar o cérebro conectado ao céu e aos dedos, ó cérebro conecta-te, talvez através do GodSpot, localizado num neurónio como pretendem alguns cientistas entusiasmados, uma espécie de mail de Deus... O candeeiro da rua abriu-se e fechou-se, mas não, não se fecha um candeeiro, apaga-se-lhe a luz, porque o candeeiro não tem portas nem pernas para ter passos, até parece que estou a falar do governo. Um candeeiro é uma coisa inerte cuja função é a de se iluminar à noite, apagar-se de madrugada, com pássaros a borrarem-lhe o crânio e cães a mijarem-lhe (esta saiu em vernáculo, vê-se logo que estava em transe porque sou bem educado e não escrevo palavrões) na base... Alguns bêbados também ali se aliviam, coisa que nunca fiz, mesmo com um copo a mais. Mas alguns amigos fizeram-no, para ser honesto lembro-me de o ter feito, sim, durante a noite, sim, mas não num candeeiro, foi numa estátua duma outra cidade. Foi uma daquelas coisas parvas de adolescente, «e se fossemos mijar numa estátua em Novo Redondo?» Estávamos no Lobito. Não me lembro do nome do herói na estátua mas recordo-me que fazia noite. Éramos três, um tinha carro, guiou, chegámos ao destino, mijámos na base da estátua, não sei se havia pombos a defecarem-lhe na mona. Era de noite e tínhamos de fugir antes que o guarda-nocturno aparecesse. Também não podia fazer grande coisa, o pobre guarda-gatuno (era o outro nome que lhe dávamos, para gozar) andava a pé ou de bicicleta, era mal pago, não tinha pistola, trazia matraca pendurada no cinturão, vestia farda de caqui, boné de almirante e tirava um cochilo nas escadas dos prédios.

Arre! Aí está... Perdi a conexão como acontece às vezes com o wifi lá de casa. Bom... Vou tentar de novo...

Oooooommmmmmmmm.... Oooooommmmmmmmm.... Oooooommmmmmmmm....

Deixa-te guiar, deixa os dedos correrem, exprimirem um pensamento bonito... Abandona-te, deixa vir naturalmente a coisa, deixa... A vida é como a noite... Não, não é como a noite. A vida é como um candeeiro, ilumina-se, apaga-se, vê sol, vê noite, às vezes defecam-lhe em cima, às vezes mijam-lhe por baixo, mas teima em ficar de pé até ficar ferrugento. Um dia há-de cair, corrompido pela velhice. A vida é isso mesmo, uma coisa que vive como um candeeiro que para sobreviver tem de se conectar a uma corrente única que dá vida a outros candeeiros plantados pelas ruas, somos comunidades de candeeiros, uns mais brilhantes, outros menos, alguns extintos, outros avariados que ficam a brilhar noite e dia até a lâmpada se fundir. Depois pifam e ficam malucos...

Uf... Pausa! Lá se foi o espírito... Mas deixou-me pensamento bonito, se calhar vou pô-lo no Facebook para os amigos clicarem no «gosto», «like», «j'aime», «me gusta», nas quatro línguas que eles falam. Estou cansado de não pensar. Quero descansar. Relaxar. É duro erguer diques para conter pensamentos intrusivos. Prefiro a lógica ao channeling, acho que não tenho jeito para isto, os espíritos superiores dão-me com os pés como fizeram as minhas namoradas. Aparte a última intervenção, aquela da vida que acho bonita, o channeling  não me trouxe nada de jeito. Aquilo é mijadelas e pombos cagões e candeeiros enferrujados. É pena! Gostava tanto de produzir um pensamento grandioso do género: a vida é como uma vaga que vai e vem, vai e vem, vai e vem... Olha que chatice! Fiquei encalhado neste vai e vem... Espera! Até me leva a pensar em perversa copulação. E perversa porquê? A copulação não é perversa se for consentida por quem copula. Pára meu! Em vez de channeling, isto ainda vai dar em pornografia. Mas para ser sincero esta deriva tem os seus encantos. Posso-me embalar por aí fora, dedilhar a pele excitada das teclas... Aaaah! Há espírito que ronda, que fareja... Sinto-o pertinho. Deixa-me pôr em posição para fisgá-lo.

Oooooommmmmmmmm.... Oooooommmmmmmmm.... Oooooommmmmmmmm....

A vida é como as vagas do mar espraiando-se sobre os areais do mundo, as sombras da noite envolvem-nos as coxas e os rins doidos de paixão, reinventamos as ondas com este ritmar dos corpos a bater na água que vai e que vem que vai e que vem... Mesmo as estrelas se calam, elas que gostam tanto de crepitar  risos maliciosos e de tanto brilhar como candeeiros iluminando as picadas percorridas por espíritos voyeurs que nos contemplam, que nos encorajam... Aaaah! Continua, continua, espírito sensual que a mim te conectaste. Olha lá! Espero que sejas espírito-mulher porque sou heterossexual! Ah, sim? És do género feminino? Então fala, fala... Isso... Inventamos vagas e crispações e arranhamos a areia com os dedos curvados pelo desejo que se lamenta, mas que não é dor, que é um furor antigo, mas bom, uma fúria que nos sai das vértebras pela base da espinha... Uma pulsão irresistível de nos enterrarmos pela noite adentro... Tu veleiro, eu brisa; tu vento, eu vela. Corpos molhados singrando águas tropicais que ritmam esta paixão bivalve. Quilhas cruzam águas revoltas, encapeladas, levantando vagas e salpicos... Hmmmmmm. Voilà! Uma tempestade rumoreja, aproxima-se, ribomba, há relâmpagos e aguaceiros... Afogamo-nos um no outro! E há milagre, também, há milagre inesperado flutuando na superfície das águas salgadas: a espuma das ondas sabe a mel picante!

Uuuuf!

Creio que desmaiei. Ou adormeci. Quando acordei, nada de best-seller. É melhor ficar quieto. Uma especialista nestas artes elucidou-me. Fracassei em comunicar com o Eça porque, como sou ateu e descrente, tenho tendência para atrair espíritos de baixo astral.  A influência dessas alminhas corrosivas pode ser perigosa, levar-nos ao deboche, à doença ou (em casos extremos) à violência, verbal ou física. Fiquei com medo, vieram-me ao espírito alguns pensamentos terríveis, inconfessáveis, que me assaltam quando oiço os políticos mentirem-me com descaro como se fosse idiota. E sobretudo agora que estamos em eleições dos dois lados do Atlântico.

E assim se concluiu a minha experiência em escrita automática. Tenho um amigo sarcástico que gozou comigo, dizendo-me que, se quero dedicar-me ao esoterismo, é melhor tentar o partido monárquico. Ele tem uma ideia fixa com a monarquia, já ma tinha aconselhado quando andei à procura dum deus. Mas se calhar o homem tem razão. De facto a monarquia não me enfurece, ao contrario, faz-me rir, acho-a honesta e grandiosa, é mais barata, eleva-me a alma e repele os espíritos de baixo astral que são, seguramente, republicanos com tendências esquerdistas.


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© Carlos Taveira


LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE



Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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