Saturday 5 November 2016

Eu minto, tu mentes, ele não

Onde se desmistifica a mentira, a nossa e a deles
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Como sabes, aqui não se procura a facilidade, já conversámos sobre corrupção, impostos, eleições, preconceitos, adolescência, assuntos de trato delicado. E como o que nos une é a profundeza e a complexidade dos assuntos, hoje acorro em defesa dos políticos e do jeito com que manipulam meias verdades e quase mentiras. Assunto espinhoso, arriscado, mas o que é a vida sem riscos, não é? Antes, porém, há uma experiência pessoal a partilhar e factos antropológicos a estabelecer...

Esqueci-me das minhas primeiras mentiras, certo, todavia recordo-me que foi durante a confissão antecedendo a primeira comunhão, católica, que as assumi. Contrito, ajoelhado perante um padre severo, oculto na sacristia, admiti: «Menti à minha mãe». O confessor, habituado aos pecados insossos da canalhada, ignorou-a, passando a outra, com mais raça: «E tiveste maus pensamentos?» Tentei fintá-lo, disse «alguns», desgraçadamente o homem, astuto caçador de vícios, pediu-me para precisar a natureza desses maus pensamentos. Abro parêntesis para uma explicação necessária: mau pensamento não é equivalente de pensamento mau, o segundo tem a ver com violências, roubos, fugas ao fisco e coisas afins, o primeiro com pecados da carne. Fecho parêntesis. «Pensei roubar», retorqui, tentando passar gato por lebre, isto é, um pensamento mau por um mau pensamento. «E concretizaste o intento?», perguntou. Convencido de o ter driblado, confessei, todo contente, que roubara um anzol na caixa de pesca do meu pai. Era não fazer jus à tenacidade do homem, que não largou o osso: «Diz-me: e o aguilhão da carne atormentou-te?» Apavorado com o Inferno que as mentiras trazem, dei a língua ao gato, embora estivesse confuso: o tal aguilhão desencadeara sonhos que até nem tinham sido assim tão maus. Tais são as esparrelas do Chifrudo! E o padre, sereno: «E concretizaste o mau pensamento?» E eu, insultado: «Não!» E ele, seráfico: «Nem contigo próprio?»

Raio do homem, hã?

Quando o padre me colocou aquelas perguntas embaraçantes, já os humanos haviam abandonado, há milénios, as peles grosseiras e fedorentas dos (pouco românticos) hominídeos originais. É minha convicção que, no estado primitivo em que se atolavam, esses primatas inteligentes eram seres caracterizados pela ausência de mentira, calcanhar de Aquiles, passe o anacronismo, responsável pelos seus fiascos na corrida ao cobiçado estatuto de Homo Sapiens Sapiens. Mesmo o austero Neandertal, sério candidato, fracassou. Basta ver-lhe a cara para constatar a sua honestidade. Pachorrento, talvez monogâmico, foi-se reproduzindo, com comedimento e virtude, mas sem génio, pelas deslumbrantes paisagens europeias, durante mais de 200,000 anos, período que proponho rebaptizar com nomenclatura apropriada: era da Pré-Peta. 

Esta santa paz estoirou num risonho dia de Primavera, quando o probo Neandertal deu de caras com um ser exótico, verboso, simpático, ágil, alindado com colares, pulseiras e missangas, a beber cerveja de cevada. Neandertal aceitou partilhar a bebida que o desinibiu e lhe permitiu ultrapassar a sua lendária timidez. Perguntou: «Viste mamutes por perto?» Ao que a criatura replicou: «Bué, meu. A meio dia de marcha na direcção do poente há um vale a abarrotar deles, e a dormir». Neandertal desfez-se em agradecimentos, ofereceu ao estrangeiro uma brasa sagrada para acender fogueiras, mobilizou o clã que correu na direcção indicada, salivando com as presas em perspectiva. Surpresa: em vez de proboscídeos, o vale estava infestado de tigres de dentes de sabre que fizeram um figo dos Neandertais! O Homo Sapiens Sapiens acabava de fazer a sua entrada triunfal no planeta, esgrimindo um utensílio que fez dele o vencedor incontestável da corrida à inteligência: a mentira. 

O astuto recém-chegado foi-se impondo ao íntegro Neandertal, desprovido de anticorpos contra a mentira, e se o presente é garante do passado, o Homo SS, com o fito de se apoderar das reservas estratégicas de mamutes, terá inventado tretas a propósito de mocas de destruição massiva. Dizem também as más-línguas que o mesmo Homo SS, armado de sex-appeal, mentiras, lábia de fadista e jeitinhos de Marialva, seduziu e engravidou muita neandertalóide ingénua. Não acreditas? Olha, se tens ancestrais europeus vai fazer um teste de ADN e arriscas-te a lá encontrar traços do bom Neandertal, que coabitou com o Homo SS durante uns 10,000 anos até desaparecer completamente.

Por uma razão misteriosa, o Homo SS era portador de genes guerreiros e entre eles estalaram conflitos sucessivos, onde a utilização da mentira em larga escala constituiu factor decisivo para vitórias e derrotas. Tal como hoje se verifica, após cada conflito a tecnologia progrediu, a qualidade das mentiras para a guerra seguinte também. Inventou-se então a diplomacia, que é uma troca elegante e codificada de tramóias entre os poderes constituídos. Tudo isto vem para te dizer que, segundo as minhas pesquisas, pela primeira vez reveladas ao mundo, não foi a posição erecta, nem as drogas como pretende Terence McKenna autor do «O pão dos deuses», que causaram a eclosão do Homo SS: Foi a mentira! Ela permitiu o grande salto qualitativo da inteligência e as hordas do homem moderno, levantando a mentira como um facho a arder na noite escura, como dizia José Régio a propósito da loucura, colonizaram o planeta Terra, levando com eles a boa nova: a génese da era da Peta. 

Nos tempos modernos utilizamo-la quotidianamente. Mesmo as crianças não escapam às patranhas dos adultos, aquilo é o Pai Natal chaminé abaixo; princesa acordada com beijoca de príncipe rico; cegonha que traz bebé. Mentiras inocentes, dirás, mas mentiras. Com a eclosão de filosofias moralistas e moralizantes, despontar de religiões e sociedades repressivas, houve tentativas para condenar, controlar e punir a mentira. Verificou-se, aliás, um dos muitos paradoxos que fazem a riqueza do Homo SS: a utilização de contra mentiras. Em vão: a mentira multiplicou-se, avançou como um maremoto pelo mundo fora. Tal como acontece com as drogas duras, houve abusos, dependências e overdoses, consequentemente a patologia debruçou-se sobre o fenómeno e etiquetou a mentira compulsiva: Mitomania! A mentira tornou-se num caso de saúde mental e é hoje objecto de estudos, mestrados e doutoramentos: Nobilitou-se! A sabedoria do povo, como era de esperar, meteu a colher, criando bastos adágios a propósito, entre os quais o mais célebre: mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo. Outra corrente popular diz o inverso: a mentira corre mais que a verdade. Assim se vê que o povo, nesta matéria como em tantas outras, está dividido. Proponho provérbio conciliatório, inédito: a verdade e a inocência qualquer mentira alcança.

A mentira, como os vírus, sofre metamorfoses: ela é manipuladora, assassina, religiosa, recreativa, inofensiva, santa, diabólica, utilitária, ignorante, trapaceira... Enfim, classifica-a como quiseres, mas a verdade é que não podemos escapar-lhe: neste mundo fervilham inúmeras sopas culturais onde a mentira é condimento essencial. Nelas nascemos, tu, eu e ele, o político, exímio no assentamento desse tijolo de base que é a mentira. Exímio, dizia, todavia incompreendido, ouso afirmar. Senão vejamos. Imagina que ele bate à tua porta e, armado duma surpreendente honestidade, desbobina diante dos teus olhos estupefactos o que de facto pretende fazer, se for eleito: privatizar a saúde; despedir milhares de funcionários públicos; aumentar as tarifas da electricidade; diminuir os impostos dos ricos e dos grandes monopólios enquanto aumenta os da classe média; defender os paraísos fiscais; reduzir os investimentos na educação; bonificar os salários dos deputados; entregar a assistência da miséria à caridade religiosa; entrar nas guerras americanas; criar desemprego para baixar os salários; ignorar a pobreza infantil; aumentar o fosso entre ricos e pobres. Não lhe perguntes pela cultura que o tipo até estoira de tanto rir! Votavas nele? Pensa num nome feio de utilização corrente, era esse mesmo que eu berrava antes de lhe fechar a porta com estrondo sobre as verdades com que me afligira.

Eu quero ouvir um discurso que me reconforte, mesmo sabendo que é falso, digno duma classe política que elevou a mentira a um nível nunca antes visto! O político, qual pedra filosofal, ao tocar na mentira transmuta-a: de metal vil, ele converte-a em metal nobre. Ela é tratada por profissionais competentes nos corredores ocultos do poder, é esculpida, torneada, ela beneficia de operações plásticas, é embelezada com fios de ouro e prata. Torna-se tão tentadora que nos deixamos seduzir como uma ingénua Neandertal face a um Homo SS. Nos lábios educados, instruídos, da classe política, a mentira é ocultada sob uma colcha tecida num léxico vistoso mas oco. Eis alguns exemplos: abordagem diferente duma mesma problemática; leitura nova dum problema antigo; perspectiva criativa à volta das dificuldades modernas; visão futurista garantindo prosperidade e progresso... Lê os discursos eleitorais e aperceber-te-ás que, por trás de cada um deles, há especialistas do verbo que cultivam a verdade e a mentira com uma tal subtileza que nunca sabemos onde começa uma e a outra acaba. O pobre candidato, submetido à impiedosa disciplina partidária, corrói assim um espírito são, imolando-se no altar do dever público para grande gáudio de Belzebu, que se baba de gozo com a farta vindima de alminhas que se danam durante as campanhas eleitorais.

Sacrifício digno da minha mais profunda admiração e respeito!

Os políticos católicos ajoelham-se diante dum pároco severo, para assumir pensamentos maus e maus pensamentos? Não sei! Tampouco faço ideia se o padre lhes pergunta se concretizaram os tais pensamentos com outros ou com eles próprios. Contudo, ao contrário do gaiato ingénuo que tenta driblar o questionamento com mentiras de terceira mão, tenho cá uma suspeita que o político possui a deslumbrante capacidade de baralhar o mais sagaz dos confessores. Seja como for, se eu fosse padre absolvia os políticos porque, conhecendo as minhas preferências gastronómicas, servem repastos a meu gosto. 

«Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam», dizia Platão há mais de dois mil anos. Referia-se, quiçá, aos eleitores descrentes que ignoram as urnas, desiludidos com os malabarismos eleitorais mais ou menos hábeis desses dois conceitos foscos, verdade e mentira. Foram esses que, fartos das mentiras dos eleitos, levaram o Tiririca à Câmara dos deputados do Brasil, político muito ao gosto do actual governo por ter votado sim pelo impeachment de Dilma Rousseff. Tiririca, hoje político, era palhaço profissional, e até me disseram que fez escola num país muito rico, muito poderoso, que votou num outro (palhaço). 

Deve ser mentira, não acredito!

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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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