Friday 18 September 2015

Busca, confusão e Rebenta Balões

Onde se transcreve um diálogo de surdos com um amigo de palavras ácidas
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Há dias em que me encontro perdido com tanta má notícia! Refugiados. Guerras. Tremores de terra. Ditadores. Crianças soldados. Enfim... Sabes bem disso, não é? Tu recebes as mesmas notícias que eu, seja qual for o posto de rádio que sintonizas, o canal de televisão que vês, o país em que moras ou a língua que falas. Às vezes acontece que as notícias desencadeiam movimentos internacionais de solidariedade. Um menino morto em frente às ondas do mar levantou uma vaga de compaixão de milhões de bons samaritanos e políticos subitamente indignados. É claro que há os outros milhares que vão morrendo e que a compaixão e a indignação ignoram. Olha um exemplo ao acaso: África! Longe das praias europeias, das câmaras, dos telemóveis, há milhares que morrem, mas tu sabes disso, não é? Morrem de fome, doenças, tiros, minas, falta de água... Enfim, calo-me já, senão deixas de me ler e preciso da tua companhia. Sinto-me esquisito, sozinho... Com saudades do tempo em que me deixavam ser ingénuo....

Buscando maneira de combater este banzo onde caí, decidi telefonar ao advogado do Diabo, aquele meu amigo corrosivo que volta e meia aparece neste blogue. O aparelho nem tocou duas vezes, ele respondeu, sabia quem telefonava. Se não vê afixado o nome de quem chama, não atende, vem o respondedor: «Se é para mim não sei se estou, logo se vê; se é para a minha mulher telefone-lhe para ela.»
Para mim estava, mas a conversa começou logo mal:
– Atão em que trampa mental andas metido? Conta lá...
– Não é trampa mental nenhuma. Ando à procura duma maneira de sair dum banzo. Preciso de encontrar um sistema de valores, filosófico, espiritual, enfim uma religião coerente ou alguém que me mostre um caminho, alguém que justifique a existência dos humanos neste planeta.
– Isso é fácil, meu. Faz lá a pesquisa seguinte no DuckDuckGo: «10 gurus mais influentes -negócios». Não te esqueças de prefixar a palavra negócios com o sinal de menos senão sai-te à cabeça da lista um pincho de gurus das finanças. E não me perguntes porque é que eles vêm antes dos outros, dos gurus do espírito. Tu queres os iluminados, né? Hás-de reparar que um dos itens listados é: «Estes são os 10 maiores líderes espirituais da actualidade (10 fotos)». Pronto! Estudas a obra de cada um... Está lá tudo. Nem precisas de os contactar, eles explicam por extenso... Segues as instruções nas bulas, e ficas curado! Um verdadeiro antídoto contra o banzo...
– Estás a mangar comigo ou quê? Sabes que detesto ser mandado, seguir ideias feitas... Quero encontrar um espaço onde possa ser eu mesmo, livre, onde haja um líder que me oiça... Onde mesmo a gente comum possa ter influência... Um líder que me...
– Cala-te mazé! É impossível, digo-te já. Mesmo se não fores tiranizado pelo guru de serviço és influenciado... O que é uma boa coisa para pessoas como tu. Olha bem para ti. Leste tanta coisa à esquerda e à direita, sobre religiões e ateísmos, filosofias materialistas e teístas... E deste em quê? Andas tão confuso que até pensas tornar-te monárquico.
– Posso andar emaranhado, mas nenhum vendedor de felicidade ao desbarato me influenciou.
– Que obtuso me saíste! Claro que foste influenciado. E da pior maneira: pela negativa! Quando te animas com a biografia dum grande sábio, lá vais tu procurar a argumentação dos detractores. Para estares seguro... Para não te enganares... E, ooooh, coitadinho de ti, encontras sempre quem te mostre que o sábio tem defeitos. Olha o Gandhi... Lembras-te? Tinhas encontrado o teu guia! Viste-lhe o filme meia dúzia de vezes, vinha-te a lágrima ao olho com as frases tãããããão inspiradoras com que chateavas toda a gente... Até que te provei que o super-guru afinal era um homem como os outros. Odiaste-me quando te mostrei que o homem tinha escrito, preto no branco, uma infinidade de bocas racistas contra os negros, das quais nunca se arrependeu. Que dormia todo nu com caçundinhas de 16 anos, entre as quais as sobrinhas... Ooooh... Coidatinho de ti... Ficaste logo traumatizado... E desataste à procura doutros defeitos. Encontraste-os e não foram pequenos! E como o Mohandas não era um ser imaculado, nem sequer um democrata, desenhaste-lhe uma cruz sobre a imagem de santo pobre. No entanto o homem inspirou positivamente milhões de humanos. É o que conta, né? A produtividade da santidade. A sua acção foi benéfica, mau grado aquelas greves da fome duvidosas. Mas tu desiludiste-te... Desligaste-me o telefone na cara sem dizeres água vai. Precisas de pureza!  
– Coerência! Há-de haver alguém íntegro, alguma religião inatacável, uma pessoa consequente...
– Consequente? Há sim: Olha o Mandela! Mas o homem de espiritual não tinha nada. Ao contrário, parece que era ateu e se calhar com ideias comunistas... Era amigo do Fidel Castro, imagina!
– Estou a falar de coerência espiritual... Não do Mandela.
– Mostra-me uma religião e aponto-te logo uma dúzia de incoerências...
– O confucionismo.
– Estás a falar com os pés, meu... Confucionismo não é religião.
– O budismo! É pacífico, não me zunem a mona com um Deus perfeito, terrivelmente bom.... Mas incapaz de vencer o demónio...
– O budismo? És burro ou ignorante? Atão não era a religião do exército japonês que fez massacres horripilantes na China, torturas inqualificáveis, violações de mulheres em massa? Um exército de budistas que construiu os campos de prisioneiros mais asquerosos da grande guerra... E os religiosos zen lá estavam, muito serenos, a acender pauzinhos de incenso... Impediu o quê o budismo?
– Foram os homens que derivaram...
– Cala a boca, meu, só dizes besteiras! Se os homens derivam é porque são os homens que concebem as religiões... Consequentemente as religiões saem à nossa semelhança: Imperfeitas... Incoerentes... Ilógicas...
– Nem tudo. Individualmente, cada uma delas tem qualquer coisa de bom. Se pudéssemos extrair essa parte....
– Porra! Olha que até me fazes dizer palavrões. Queres um bufete de religiões onde vais escolher os pedaços mais gostosos, né? Mas isso já existe: New Age. Nunca ouviste falar? É elástico, compões a refeição espiritual segundo o apetite de momento, e até engatas umas caçundinhas jeitosas que elas são muito dadas por lá. Atão se as convenceres que és um ser de luz... Olha, às tantas até te convém, a ti a quem as namoradas dão todas com os pés.
– Quando me desponta uma esperança no espírito, lá vens com a tua agulha e... BUM!.
– Sabes como sou... Não te lembras que me chamavam Rebenta Balões? Não reparaste que é isso que os ditos humanos querem? Balões! Balões imensos, daqueles que os levam aos céus. O produto que os faz voar é menos importante, o que é preciso é descolar. Olha à tua volta. Maior parte anda a voar com um balão numa mão e uma agulha na outra para rebentar os balões dos outros.
– Mas tu não tens balões! Nem eu...
– A diferença entre nós, é que tu estás pregado ao chão à procura duma barcarola como a do padre Gusmão. Para a encheres de hélio ou ar quente ou lá o que era... Ou de vontades roubadas como no romance do Saramago. Queres voar mas não consegues! És duma candura comovente. Ainda me fazes chorar.
– E tu?  Não me digas que não te faz falta ver a terra do alto.
– Sofro de enjoo quando voo... Mas tenho outras coisas nas mãos...
– O quê?
– Uma caixinha de agulhas!
Desliguei, furioso, sem dizer água vem.

Isto aconteceu no princípio de Setembro. Fui à janela e vi uma grande quantidade de balões voando pelo azul do céu. Não pude deixar de imaginar o advogado do Diabo visando-os com um arco de corda bem tesa e flechas pontiagudas.  Era a famosa largada de aerostáticos na região onde vivo, uma das atracções turísticas cá da banda. O festival em si dura vários dias e há proprietários de balões que te levam a dar uma voltinha mediante uma certa quantia. Ali, a coisa é clara. Não há céu gratuito, não tocas nos comandos e vais para onde o vento te levar.  

E voltas sempre à Terra...​ Mesmo quando o balão cai! Sobretudo quando cai?


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© Carlos Taveira


LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOQUE



Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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