Thursday 21 March 2019

Uma coisa chamada prisão

Onde é questão de ladrões de sossegos
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São Paulo Prisão de Luanda
Olha meu, não sei se te disse, mas publiquei um livro no reino de Portugal. Memórias de uma cadeia onde penei quando gozava os meus doces e inocentes vinte aninhos. No lançamento estiveram muitos amigos e antigos companheiros de infortúnio que tiveram a fortuna de lá saírem vivos e sem grandes mossas. E dado que a denúncia e o rancor não fazem parte do meu ADN, não foi com malquerenças no coração que atirei para o papel algumas memórias desses tempos conturbados. O que se segue foi a minha intervenção durante o lançamento, que gostaria de deixar arquivada em alguma parte. Não é grande coisa, como de costume, mas como sou vaidoso... 

Foi assim... 

Era uma vez, em tempos que já lá vão, no norte da América do Norte... Havia ali uma colónia de ingleses, a Nova Inglaterra, próxima de uma outra de franceses, a Nova França. E como acontecia ao longo dessa América, havia autóctones por todo o lado, esses a que portugueses e espanhóis chamam índios. Colonos franceses e ingleses serviam-se destas nações por três motivos. Um, para com eles aprenderem a sobreviver nos invernos glaciais que muito europeu matava. Dois, para com eles estabeleceram alianças de guerra, os franceses encorajando-os a atacar ingleses e seus aliados índios e vice-versa: Eram guerras interpostas, estratégia ainda hoje praticada pelas superpotências deste mundo. Três, para trocarem objectos europeus por peles valiosas, especialmente de castor, das quais os homens das nações autóctones eram exímios curtidores. Esta última actividade era de grande interesse para o inglês que recebeu, no seu burgo colonial, a visita de um índio que por ali se apresentou sem convite. Não trazendo peles, nem vindo integrado num pelotão de guerreiros, num burgo que há muito aprendera a defender-se do Inverno, aquilo era índio imprestável aos olhos do colono que lhe perguntou, de mau humor, que diabos vinha ele ali fazer. Ora bem, kamba (*) inglês, responde-lhe o índio, vim de visita ao teu kimbo (**). O inglês, para «fazer boa muxima», outra expressão angolana que quer dizer para ficar nas boas graças de alguém, engoliu a irritação e fez-lhe a vontade. Depois de ter visitado casas, igrejas, cemitério, taberna e armazém geral de mercadorias, o índio apontou para um edifício bizarro: Que é aquilo? Uma prisão, responde-lhe o colono. E para que raios serve isso? O inglês iluminou-se por dentro, veio-lhe uma inspiração: É para lá trancafiar os índios quando aparecem aqui sem peles para a permuta. O outro ficou a olhar para o cicerone, intrigado: Posso visitá-la? Claro que podes, arreganhou-se o colono. E assim foi, o índio entrou na prisão, espreitou para os calabouços fétidos onde havia homens acorrentados sobre a palha podre, barbas grandes, esquálidos, alguns vergastados e de olhar moribundo. Não lhes ligou nenhuma, entrou no armazém, subiu ao celeiro e desceu à cave, afastou sacos, empurrou barricas, puxou fardos, abriu armários e gavetas... Revistou tudo de fio a pavio! Saiu de lá com um grande sorriso e, mirando o inglês como se este fosse idiota, declarou: A tua prisão não funciona. Não funciona, aparvalhou-se o colono. Então, ó kamba inglês, tu dizes que fechas lá os índios que não trazem castor, não é? Tal qual, confirmou o interlocutor ao que o outro replicou: Mas lá dentro não há castores, o teu problema não fica resolvido. Ficaram os dois a olhar um para o outro, sem saber que dizer, o inglês confirmando o que suspeitava, que os «selvagens» não pensavam civilizadamente e o índio validando o que os amigos lhe diziam, que os brancos eram esquisitos.

Ora esta história, verídica na essência, dramatizada porém para lhe emprestar os contornos do conto, mostra duas coisas. Uma, que as prisões são uma criação recente na já longa história da humanidade: nunca tinha passado pela cabeça do índio construir uma coisa daquelas. Duas, que, ao contrário, a crueldade tem feito parte do percurso do homo sapiens: o índio não se mostrou admirado nem chocado na presença de prisioneiros supliciados.

Assim eram as prisões dos reis que, com o passar dos tempos, as aprimoraram e, dado que houve monarcas que se outorgaram a missão de instaurar um pensamento único, se  especializaram. É que, para lá de rufiões de delito comum, como ladrões de cavalos ou bicicletas, existiam súbditos que se desviavam (ou contestavam) o real pensamento trazendo pesadelos aos soberanos que muito se desassossegavam. Vai daí, os conselheiros do rei conceberam dois tipos de masmorras: numa delas trancou-se o ladrão de bicicletas, na outra engaiolou-se o ladrão de sossegos. Verificou-se então uma assimetria, a prisão do ladrão de bicicletas era populada por gente má guardada por gente boa, enquanto na outra, o ladrão de sossegos encontrou gente boa guardada por bandidos. Na primeira, existia uma sociedade prisional violenta com hierarquias mafiosas e ajustes de contas entre os detidos, que os guardas tentavam controlar. Na segunda, o ladrão de sossegos encontrou uma comunidade de gente bem, sossegada, interessada por diversos assuntos que lia muito e muito discutia e discorria. Postura que muito inquietava o rei que enviava os seus capangas maltratar e mesmo matar muita desta gente pensante e dialogante, porque, não o esqueçamos, o rei impunha o pensamento único. 

Ora como nada é eterno, o ladrão de bicicletas, cumprida a pena imposta por juízes, sai da prisão. O ladrão de sossegos, que não passara pelo sistema legal oferecido aos bandidos e não tinha pena definida, também saiu. Isto, porque o mundo livre exercera pressões sobre o monarca de pensamento único que decidiu acordar uma amnistia aos ladrões de sossegos. Amnistia sendo, segundo um tal José Vilhena, hoje esquecido, o acto de os governantes perdoarem os crimes que eles mesmo cometeram. E que fazem estes dois presos libertos? 

O ladrão de bicicletas vai roubar carros...

O ladrão de sossegos vai escrever livros, para que a memória não apague os horrores recordando que monarcas de pensamento único ainda existem e ainda matam e maltratam.  
    

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© Carlos Taveira

LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE
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São Paulo, Prisão de Luanda, Memórias, Português, Guerra e Paz, Editores, Lisboa, Portugal, 2019, 176p, ISBN 9789897024511 

Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507