Tuesday 28 July 2015

Raio de padre que me prometeu chapadas

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Onde um religioso profissional me ameaçou em pleno altar
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Olha meu camba, comecei a contar pelos dedos e cheguei à terrível constatação que me resta muito menos tempo para viver do que aquele que já vivi. Estou a ficar velho ! Consequentemente, deu-me para contabilizar os meus pecados.

Iiiiiih... Cruzes, credo, canhoto !!!

Afinal sempre me dava jeito uma religião que me perdoasse os deboches e outras façanhas sem glória das quais não sinto grande orgulho. E, claro, como só um Deus o pode fazer, falei com um amigo que é ainda mais velho que eu, para saber a opinião dele. Mas esse homem é um cínico, um desiludido da vida, um azedo, e desaconselhou-me.
– Ó pá ! Olha que isso é caro, não é como dantes. Vão-te ao bolso, meu. Aquilo é dízimo todos os meses, depois umas massas para o tecto da igreja, que mete água, as esmolas nas missas, uns cobres quando vem o Natal, para os pobrezinhos. Vão-te ao bolso meu...
Repliquei-lhe que o paraíso era eterno e não tinha preço, mas ele calou-me com aquele gesto seco da mão que significa: só dizes asneiras. E prosseguiu:
– Vai é pró partido monárquico que é mais barato, e até tens direito a um Deus com a inscrição. Fortalece-te a convicção, meu... é que vais precisar de muita fé para acreditares nos dois, no partido e no divino. Oh! Oh! Oh!

Riu-se grosso,  como se tivesse proferido a piada do século. Um cínico, é verdade, mas tinha razão numa coisa: isto de religião e Deus já não é como nos meus tempos de jovenzinho quando eu era católico e a igreja abastada. O catolicismo era barato para todos, por ser o credo oficial, financiado pelos contribuintes, mesmo se fossem protestantes como o senhor Amílcar da Caponte. Nesses tempos os padres não precisavam de assediar os cristãos para pagarem o dízimo, que não sei se hoje em dia será dedutível de imposto, hei-de-me informar, às vezes são estas coisas anódinas que desencadeiam a faísca da fé.

Como é que as testemunhas de Jeová souberam que eu andava à procura dum Deus ? Não faço a mínima ideia. Mas é facto que encontrei duas à porta de casa, de casaco e gravata, brochuras na mão. Vinham para me convencer a ir a uns estudos bíblicos. Sem compromisso, garantiram-me. Para me desembaraçar deles, respondi-lhes, enfadado, que já tinha tido uma religião quando era menino e moço, que não estava com vontade de repetir a experiência, que agora estava  a considerar o partido monárquico. Uma das testemunhas, um gajo com maneiras de chico-esperto, ficou de chispa no olho a raspar-me o fundo da retina para tentar descobrir o trauma que me tinha levado a abandonar os papistas e, a partir dali, dar-me a volta à mona e converter-me. Desatou a falar da depravação dos padres e eu, para acabar com a conversa, expliquei-lhe que até me tinha dado bem com eles. Havia mesmo um (o padre Celso) que era muito alegre e que vinha jogar à bola connosco e havia outros de espírito muito aberto que falavam de sexo e tudo. Alguns deixaram de ser padres depois do 25 de Abril, não sei se foi por causa da descolonização ou de tanto falar de sexo. Dei-me sempre bem com os padres, é verdade, mas há excepção: o raio do padre Oliveira Martins que era enorme, de pestanas cabeludas, e que me prometeu chapadas quando fui à comunhão solene.

Eu explico...

Uns dias antes do dia da cerimónia da primeira comunhão (e solene) havia ensaio. A primeira comunhão era coisa séria e delicada, havia cuidados a ter, por exemplo não se podia mentir entre o dia da confissão e o da comunhão, nem se podia deixar a hóstia tocar nos dentes. Senão estava tudo estragado e corríamos o risco de ir parar ao purgatório, que é como ser deputado da oposição. A parte mais bonita da cerimónia da primeira comunhão acontecia quando éramos levados por anjinhos (que eram meninas) para o altar. Esperavam-nos ali, com firmeza, as mãos robustas do raio do padre Oliveira Martins com uma hóstia entre os dedos. Havia duas filas de crianças prontas para o sacramento, uma ala esquerda e uma ala direita. Eu fui colocado na da esquerda, posição recorrente durante toda a minha vida e que só me trouxe chatices. Naquele dia também. Os dois anjinhos aproximavam-se de nós, num passo lento, medido, grave, punham-nos uma mãozinha no ombro e guiavam-nos até às horrendas mãos do raio do padre Oliveira Martins onde nos era dada uma falsa hóstia não consagrada (se bem me lembro, há pormenores que me escapam) para treinar, não fosse a verdadeira tocar-nos nos dentes o que estragava tudo.

Ora aconteceu que o rapazote que ia pela ala direita ao mesmo tempo que eu, o meu par de comunhão por assim dizer porque íamos dois a dois, ficou de olho gordo no anjinho que me calhou. Chamava-se Ruth, tinha uns cabelos ondulados cor de azeviche e uns olhos negríssimos, inquietantes e destemidos. Ora, quando ela me pôs a mão autoritária no ombro (sob o olho vigilante e impiedoso do raio do padre Oliveira Martins), vi uma grande ciumeira turvar o olhar do meu par de comunhão, que progredia pela direita. Ia conduzido pela mão da Rosarinho (mas não é a Rosarinho que se casou com aquele tipo magrinho que era jogador de hóquei, o Peneda, é uma outra que não sei onde está), que também era bonita, mas de beleza mais discreta e de semblante muito doce. A Ruth pareceu-me autoritária (não sei se era, mas pareceu-me) e como já naquela altura as mulheres autoritárias me intimidavam (sentimento que perdura) baixei logo os olhos. Para tudo vos contar, a Rosarinho era a minha preferida e, embalado numa onda de virtude proporcionada pela santidade do lugar, imaginei-nos naquele mesmo altar a sermos casados pelo padre Celso (mas não digam isto à Rosarinho porque ela nunca soube, era segredo). Todavia, como eu tinha bom feitio e não era ciumento (ainda hoje não sou, mas hoje é fácil, estou quase velho e os ciúmes dão-me uma grande canseira), achei graça àquela situação, invertida por assim dizer, a de ser conduzido pela preferida do meu camarada de comunhão e ele a ser conduzido pela outra com quem o padre Celso me haveria de casar um dia. Mas ao ver-lhe a cara de despeito e de inveja com que me mimoseou quando a Ruth pousou a mão dela (com autoridade) no meu ombro, impelindo-me para o altar (pela ala esquerda), olha meu camba, deu-me para rir. Ora eu não sabia que quando se caminhava para receber a primeira comunhão (pela ala esquerda ou direita, ia dar ao mesmo) os risos eram muito mal recebidos pelo Eterno que os considerava como uma grande falta de respeito. O raio do padre Oliveira Martins sabia-o muito bem, e como era ele o encarregado de manter a disciplina que o Senhor impunha, mirou-me com uma carantonha horrível, atrás dos sobrolhos cabeludos muito franzidos, carregadíssimos, e largou um trovão colérico, numa voz que parecia sair das profundas do Inferno:

Ó miúdo, vê lá se queres levar duas chapadas aqui mesmo.

Fiquei apavorado !

A cólera divina, incorporada no raio do padre Oliveira Martins, fê-lo crescer ainda mais enquanto eu ia diminuindo. Ainda por cima havia muitas pessoas na igreja a assistir ao ensaio, madres e tudo. Imagina, meu camba, toda aquela gente de boa cepa católica a mirar-me com severidade como se eu fosse um iconoclasta juvenil, a ser depachado para o purgatório em correio prioritário. Lampejavam pela igreja olhos cruéis, sobrolhos ríspidos, semblantes ameaçadores, tudo aquilo focado em mim como fachos ardendo nas mãos de inquisidores do Santo Ofício. Acho que a Ruth teve pena de mim, lembro-me que a cara severa dela (que me parecia autoritária) se suavizou, se calhar porque sentiu uma compaixão cristã (ao contrário do raio do padre Oliveira Martins) e porque achou tudo aquilo um exagero. Olha meu camba, nem sequer ousei mirar a Rosarinho para não lhe mostrar o pânico estampado no meu semblante, não fosse ela pensar que eu era um medricas. Mas lembro-me bem da fronha do cretino do meu par de comunhão que andava de olho gordo na Ruth (ela nunca lhe ligou nenhuma, acho que o ignorou até hoje e é muito bem feito): arreganhou-se-lhe a cremalheira num sorriso vicioso, de vencedor, contente com aquelas terríveis chapadas que me tinham sido prometidas.

Deve ter sido ali, naquele momento, que iniciei uma longa carreira de descrente. Foi um grande choque para mim constatar que a justiça não existia nem sequer na casa de Deus. Senão, porque é que ao tipo que sorria de vingança (que é pecado) não lhe foi prometida nem uma bofetadazinha por se ter rido de mim? Hã? Seria porque o raio do padre Oliveira Martins estava mais concentrado na progressão da ala esquerda? Ficou-me deste acontecimento uma tendência maquinal de caminhar para a direita quando me distraio. Uma psicanalista explicou-me que esse jeitinho é defesa inconsciente, para evitar as chapadas do raio do padre Oliveira Martins que me esperam nas alas esquerdas. Se fosse hoje em dia vinha logo a televisão denunciar a crueldade, o raio do padre apanhava com um processo no Tribunal de Menores e ainda lhe calhava um juiz rafeiro, comunista, a babar-se de gozo, daqueles que se pelam por enviar um sacerdote para a pildra. Se um dia falar com o Papa Francisco, que parece ter o bom feitio do padre Celso, hei-de-lhe perguntar se o raio do padre Oliveira Martins terá feito uma escala técnica pelo purgatório acusado de ter prometido chapadas a uma criança diante dum altar consagrado.

E isto para não falar das cóleras do raio do padre quando as senhoras começaram a entrar na igreja de cabeça descoberta. Olha, meu camba, chateei-me, deixei de lá ir, só ia às procissões por causa duma garota de olhos lânguidos, claros, mas que me deu com os pés como fizeram todas as outras.

Não há justiça neste mundo, meu camba, acredita...

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© Carlos Taveira


LIVROS ASSINADOS PELO AUTOR DO BLOGUE



Texto Editores, Lisboa, Portugal, Lisboa, 2006, 319p, ISBN : 9789724731452

La traversée des mondes, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, Ottawa, 2011, 576p, ISBN 978-2-89699-392-5

Mots et marées, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2014, 560p, ISBN 978-2-89699-392-5.

De la racine des orages, Poésie, Français.
Les Éditions L'Interligne, 2014, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

Mots et marées tome 2, Roman, Français
Les Éditions L'Interligne, 2015, 186p, ISBN 978-2-89699-404-5

A Feather for Pumpkin, Fiction, English
Create Space, 2016, 186p,  ISBN-10: 1519662505, ISBN-13: 978-1519662507

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